EXPRESSO Cartaz 22 Mar. 1997
Nozolino no Teatro S. João / «Jogos de poder em Veneza»
O que Nozolino procurou em Veneza foi fotografar um século XVII que poderia ter sido o da peça que Ricardo Pais encenou no Teatro S. João — é também este, aliás, que assina o projecto da exposição. E ter-lhe-á agradado poder não ver a cidade actual, que detesta, suspendendo o que é a atitude previsível do fotógrafo. A encomenda, condição de trabalho normal e tantas vezes favorável, foi diferente de outras oportunidades que tem tido para, por exemplo, fotografar Madrid (Miradas Fin de Siglo, Madrid Visto por..., vol. 2, ed. Banesto, 1993) ou Tóquio (Tokyo Today, ed. EU Japan Fest Japan Committee, 1996). Nesses casos, habituais para um «jet-set» fotográfico a que ascendeu, trata-se principalmente de fazer variar o cenário onde os autores se auto-retratam ou de reproduzir as marcas de um estilo próprio em território alheio, seguindo as regras necessárias de muita da fotografia de viagem ou de estrada, que isso mesmo exige.
A propósito de (Ensaio Para) A Salvação de Veneza, adaptado de Thomas Otway, um contemporâneo de Shakespeare, Nozolino aproxima-se dos terrenos de uma mais rara fotografia ficcional que, não sendo a ilustração de um texto, dele colhe inspiração e «pretextos». O próprio título do pequeno album onde as imagens se publicam, Suspiros de Chumbo, distancia-se da secreta concisão de outras obras mais pessoais (Limbo, Kuan, Penumbra, Solo, a seguir, ou, a primeira, Para Sempre) para ganhar (?) outra dimensão mais literária.
O preto e branco que se poderá dizer implacável, porque o que as sombras sempre ocultam intensifica o desvendar de uma permanente instabilidade do mundo, é o que conhecemos no trabalho de Nozolino. Mas o seu trânsito é agora entre pedras marcadas por homens antigos, estátuas, uma tela onde um reflexo de luz parece movimentar a composição e, por uma vez, dar vida a personagens, entre fachadas patrimoniais, árvores igualmente fúnebres, um céu de tempestade. Trata-se aqui, ao contrário de outras viagens, mais livres, de fazer reconhecer Veneza, de construir um espaço e um tempo precisos, como se fossem, talvez (a estreia estava marcada para ontem), adereços do mesmo espectáculo prolongado do palco ao salão nobre.
Embora sem a dimensão ficcional que esta encomenda aconselhava ou impunha, as fotografias recordam uma outra obra menos conhecida de Nozolino, «Regard sur le Musée Fenaille» Avant Travaux (Rodez, 1993). Aí, o tempo que se inscrevia nos objectos, observando com respeito uma degradação carregada de memórias («Há uma fissura em tudo.../ É assim que a luz penetra», versos de Leonard Cohen tomados como epígrafe), construía um mundo habitável na companhia de fantasmas fraternais. Os fragmentos de história do museu francês mantinham então uma proximidade humana que está agora ausente no tempo congelado de Veneza.
A montagem das fotografias de Nozolino no Teatro segue também critérios inéditos na apresentação do seu trabalho. Pela primeira vez, os habituais pequenos formatos deram lugar às provas ampliadas até aos 180 centímetros, condição evidente para as expor no salão nobre sem alterar, com a construção de um espaço próprio, o cenário dos dourados e veludos. Facilmente se verá, no confronto com a edição em livro, que se trata aqui só de uma questão de formatos (a dimensão das provas de exposição) e não de escalas — conforme os problemas de construção e visibilidade que Gérard Castello Lopes vem interrogando.
A «instalação» é assinada por João Mendes Ribeiro, enquanto João Nunes fez o design gráfico da edição, que inclui ainda um poema de Al Berto («...esta poeira brilhante/ que se desprende dos cedros e cai/ na fissura entre a máscara e o rosto»). No espaço de poder que este teatro é com evidência, a exposição refere na sua montagem teatralizada uma intriga de poder e sexo sob o signo da morte. Mas esta é ainda mais poderosa, mais cruel para todas as máscaras e rituais do poder, na sequenciação das imagens do livro, onde se acrescentam outras sete imagens às dez que são expostas. No album, Veneza não se salva.
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