Outras fotografias de Victor Palla: provas vintage do início dos anos 50, inéditas e únicas, e provas de autor das exposições de 1984 e 1986, também únicas. Não exactamente impressões em platina, como se poderia pensar a partir do título, mas provas essenciais para se conhecer a dinâmica experimental do seu trabalho fotográfico. Na sequência do leilão que a P4 realizou em 2008 (29 de Maio) e que veio revolucionar o que se conhecia de Victor Palla e da fotografia portuguesa:
Parece ser conveniente no caso de Victor Palla poder distinguir as fotografias que ele próprio realizou (captou e imprimiu, ou reimprimiu a seu gosto) e que publicou e/ou expôs (ou não chegou a expor) e, por outro lado, as exposições que lhe fizeram, e as provas que lhe imprimiram. Há diferentes autores ou diferentes critérios autorais envolvidos: umas obras serão autográficas (?) e outras aceites ou negociadas (alográficas?, segundo a definição de Goodman revista por Genette - teoria a experimentar). Relativizando as coisas, umas são mais "autênticas" que outras.
Em termos públicos, tudo terá começado em 1955, mesmo se V.P. já faria ou tentava fazer fotografias desde os dez anos... Esse começo é ignorado. V.P. foi um dos quatro arquitectos e, em geral, um dos nove autores que incluiram fotografias na secção própria que nesse ano se voltou a abrir na (9ª) Exposição Geral de Artes Plásticas (a exemplo do que sucedera, sem continuidade nem memória própria, em 1946 e 1950). Não se conhecem as fotografias que expôs, mas existe um testemunho de que se trataria de imagens de cunho poético-documental ou realista, aparentáveis às que seriam publicadas em 1959 no livro "Lisboa, cidade triste e alegre".
Há razões para associar a re-abertura da EGAP à fotografia à imensa repercussão internacional da exp. "The Family of Man" (MoMA, NY, Janeiro de 1955, e imediata itinerância europeia), que desde 1954 se publicitara em Portugal (revista "Fotografia") e que era um tema forte em magazines norte-americanos que por cá se liam. Não é improvável que V.P. tenha sido - com Keil do Amaral, e no mesmo ano em que começa a estruturar-se o levantamento fotográfico do Inquérito à Arquitectura Popular - um dos dinamizadores da representação da fotografia na 9ª EGAP, e que tal se sucedesse a uma reorientação (súbita) da sua própria actividade fotográfica.
Não conhecemos (ainda?) as fotografias que V.P. expôs em Maio de 1955 na SNBA, mas começámos a conhecer por ocasião do leilão de 2008 as fotografias que fazia antes, e que então não expunha, segundo parece. Elas são, apesar disso, decisivas para preencher uma lacuna na história fotográfica nacional (fazendo companhia a Fernando Lemos... e a alguns modernismos que se apresentavam nos salões - o chamado "salonismo" não é o fantasma que pintam e tem dentro de si muitos cambiantes). E decisivas principalmente para estabelecer a marca originária de um interesse pela experimentação de processos que iria marcar todo o trabalho posterior de V.P. (e em especial aquele que ele próprio imprimiu, publicou e expôs).
O livro "Lisboa Cidade Triste e Alegre", de 1959, e as duas exposições de 1958 que o anunciaram e promoveram (em colaboração indistrinçável com o tb arq. Manuel Costa Martins) seguem opções claramente experimentalistas - desalinhadas com os gostos tradicionais e mesmo em ruptura com eles, marcadas pela invenção de critérios de tratamento das imagens, paginação editorial e também de montagem expositiva, que se encontravam em sintonia com orientações internacionais inovadoras, em geral marginais e pouco divulgadas. Apesar de uma boa recepção em alguns meios, a iniciativa não foi um êxito social nem financeiro, e caiu no silêncio até 1982.
Ora, é oportuno notar que António Sena e a Ether repõem o livro em circulação (encadernam e distribuem as sobras da edição) e dão o sinal de partida para o que viria a ser uma crescente consagração internacional, mas acompanham esse relançamento com exposições (em Lisboa e nos Encontros de Coimbra) onde se seguem critérios muito diferentes dos de 1958-59 - exposições e livro. Passa-se de uma ideia geral de "poema gráfico" (livro e exposição de 58) para uma concepção mais tradicional de fotografia, embora alinhando a selecção exposta em 82 já com o gosto da revisão da tradição documental que marcou o fim da dédada de 50 com as obras ou a influência universal de Klein, Frank e outros. A direcção mais neo-realista das imagens do livro (o realismo poético de intenção documental, a priosidade ao "humanismo" ou "interesse humano", etc) dá lugar nas fotografias escolhidas a um distanciamento autoral mais intimista ou a um realismo mais subjectivista, mais céptico ou ambíguo, também mais formalista. As marcas de estilo que então se propõem passam a dominar a produção posteriormente impressa na antologia de V.P. em 92 e pode ser que se tornem um maneirismo nas imagens com data posterior a 1980 aí mostradas.
António Sena referiu assim o processo de trabalho: depois do restauro dos negativos, "foi feita uma selecção de imagens inéditas ou que, no livro, tinham sido reenquadradas de forma diferente. Essa selecção incluía cerca de 300 fotos entre 4000. Dessas 300, V.P. e e C.M. retiraram cerca de 100 deixando-me a responsabilidade da escolha entre as restantes das eventualmente 30 que constituiriam a exposição. Fiz esta escolha (...)". In "Lisboa e Tejo e Tudo (história de uma exposição)", press release e artigo no JL
As 3 exposições "Lisboa e Tejo e Tudo" (1982, Lisboa e Coimbra, com 2ª versão em 1989, no Porto) fizeram-se com reimpressões de fotografias inéditas ou que tinham sido antes editorialmente reenquadradas e cortadas (ou recortadas, porque o cropping era em muitos casos radical). Seguiu-se então a regra de uma impressão em formatos regulares e rectangulares (negativo integral?), tal como a montagem da exp. seguiu, pelo que me lembro, a regra do espaçamento habitual entre imagens. Tudo era muito diferente do que acontecera mais de vinte anos antes; não uma reconstituição ou reapresentação, mas uma exposição de novas e diferentes provas (não eram novas cópias, mas provas inéditas), embora feitas com a aquiescência dos autores, naturalmente. (A "visita" aos negativos para imprimir novas fotografias não escolhidas pelos autores é uma grande questão - e um caso mais complicado quando praticado postumamente; mas os comissários ou curadores gostam muito de passar a "criadores"). Há neste caso, obviamente, um terceiro autor (ou um produtor criativo).
foto atribuída a Costa Martins e Vitor Palla, exposição "Lisboa, cidade triste e alegre" na galeria da Livraria Divulgação, Porto (Rua de Ceuta - depois Liv. Leitura), 1958. (Colecção particular, publicada em António Sena, História da Imagem Fotográfica em Portugal, p. 281)
A exp. do CAM em 1992, agora apenas de V.P. e dita retrospectiva, seguiu os mesmos critérios: como escreve Sommer Ribeiro na apresentação do cat., "não havendo ampliações de qualidade das obras escolhidas, teve de se imprimir a totalidade das fotografias..." (a cargo de Yvon le Marlec). Não é claro quem orientou a selecção, já que a exp. não teve um comissário e foi contando com várias colaborações (Albano Silva Pereira, Teresa Siza?; ainda Pedro Miguel Frade, entretanto falecido?).
Numa das entrevistas que deu à época (a Margarida Medeiros, Público), V.P. aponta que as fotos desta exp. "foram feitas a partir do negativo integral (...) ao passo que para o livro cortávamos bocados da imagem..." Noutro passo, ressalva que "o livro, entre tudo aquilo que fiz, é uma coisa que aconteceu num determinado período, mas não deve ser demasiado sobrevalorizado em relação ao resto do meu trabalho. Sempre fui fotógrafo, como sempre fui arquitecto, gráfico, pintor. Sempre que possível procurei ligar todas essas formas de expressão".
Numa 2ª entrevista (Maria Leonor Nunes, JL) diz: "Agora parece que fomos eleitos como os grandes autores de uma obra. Às vezes, isso incomoda-me, porque se esquece que fizemos muitas outras coisas. Costa Martins é tb pintor." Além da importância da multiplicidade das disciplinas e da relação entre elas (refere o projecto de uma retrospectiva global para 1994, que não chegou a fazer-se), parece notar-se alguma reserva face à exclusão de outro tipo de trabalhos fotográficos ("faço muitas experiências e utilizo a fotografia como instrumento de trabalho, na arquitectura, em artes gráficas"), e há uma indicação forte quanto ao gosto pelo retrato, aí ausente - "um retrato constitui uma síntese do próprio conhecimento da pessoa. trata-de e uma interpretação da sua personalidade. Daí, ser necessário tirar muitas fotografias para eleger uma."
Tinha sido precisamente dedicada ao retrato a sua participação na "Objectiva 86" enquanto na de 84 incluíra impressões experimentais a alto-contraste sobre cores lisas, reutilizando em ambas negativos de várias épocas que vinham no limite desde finais dos anos 40.
A estratégia de divulgação da Ether concentrara-se sobre a recordação e o relançamento do livro, com efeitos imediatos na descoberta de uma história esquecida e na projecção, mesmo internacional, dessa edição (o photobook), mas com a consequência certamente menos legítima de definir e promover uma certa linha única de produção de provas de exposição. A chamada retrospectiva tomou o partido de ignorar outras linhas de orientação persistente do trabalho fotográfico de V.P., que passavam - pelo menos - pelo interesse pelo retrato e pela experimentação gráfica dos processos de impressão, afirmados expressamente nas exposições de 1984 e 86 (que, aliás, a ficha biográfica do catálogo da Ether em 1989 estranhamente ignorara). Assim se radicalizaria a lógica única (e autoritária) da revisão do seu trabalho fotográfico, de 1948 (ou 1951) a 1991, sob a perspectiva da fotografia directa e de rua, ligada apenas a poéticas do quotidiano mais ou menos documentais.
A última exposição organizada pelo próprio V.P., "A Casa", em Paris, 2000, viria confirmar a permanência do interesse pelo trabalho com modelos, pelo retrato, pelas pesquisas formais e construtivas relacionadas com a arquitectura. Tratou-se também de uma luta persistente do autor para reivindicar caminhos próprios e plurais de trabalho, face a um espartilho de gosto que se construíra à sua volta, entre 1982 e 1992, e que permaneceu até há pouco.
Foi preciso esperar pelo leilão de 2008 para se repor uma perspectiva mais justa dos interesses, da formação/informação e das orientações de trabalho de V.P., trazendo à superfície imagens inéditas e esquecidas ou ocultadas, abrindo pistas mais exactas para o entendimento de uma carreira longa e original. Tratou-se, em geral, de desocultar uma parte significativa do nosso passado fotográfico.
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