Falta um roteiro, que fixe o mapa da exposição "Arquivo Universal" sala a sala, e indique os diversos núcleos que se mostram em cada uma. Pode dizer-se que faça cada visitante o trabalho de casa, e que volte depois de ir ao Google saber quem são, por exemplo, Humphrey Spender e Humphrey Jennings, o fotógrafo e o cineasta do projecto Mass Observation, o segundo autor de Spare Time (Tempo Livre), de 1939, em projecção contínua (ver "SURVEILLANCE SOCIETY, The Mass-Observation movement and the meaning of everyday life", by Caleb Crain, September 11, 2006. http://www.newyorker.com - por exemplo ). Mas algum apoio documental seria preciso para guiar o interesse do visitante, perdido entre tanta informação visual (fotografias, livros, revistas, panfletos, filmes, etc), se não traz já consigo extensas leituras.
Álbuns de Eduardo Portugal (pelourinhos em baixo, portas e portais brazonados em cima) - não identificados
Mass Observation, mais José Suarez, as Misiones Pedagógicas da República e Ortiz Echague, grande o picturialista espanhol que também frequentava os salões portugueses, mais August Sander, e também três álbuns de fotografias de Lisboa que ainda hoje (15 Mar.) não estão identificados, todos eles numa só sala, não é uma proposta fácil - e essa é uma das qualidades da iniciativa trazida do MACBA ao Museu Berardo: a entrada é gratuita, dá para voltar muitas vezes até 3 de Maio. Vale a pena. A exposição é gigantesca, o que se mostra é em muitos casos de grande importância, mas as falhas de comunicação somam-se às muito discutíveis opções ideológicas que condicionam o seu discurso.
Não é um catálogo que faz falta (seria quase toda uma história da fotografia, se não fosse apenas um repositório de imagens), mas um roteiro, um jornal da exposição ocupado por mapas e índices. (De facto, não há nenhuma história em português, mas isso é outra conversa.)
Há um livro que acompanha a exposição, mas não é um catálogo, não se venda gato por lebre - e na livraria já lá está com uma banda exterior que é publicidade enganosa: "Public Photographic Spaces - Exhibitions of Propaganda, from Prensa to the Family of Man", 1928-55", ed. MACBA, tb com versão em castelhano. Corresponde apenas a uma secção da mostra, a mais compacta no espaço físico de um itinerário muito longo e diverso. E, já agora, "The Family of Man" não é uma exposição de propaganda, mesmo se o seu idealismo universalista e a sua circulação europeia (e até Varsóvia e Moscovo) vieram a ser eficazes na batalha ideológica contra "a cortina de ferro". O comissário concordou comigo, e não fiquei a perceber o porquê desse rótulo.
E há, entretanto, um "guia da exposição" que não é um guia. É uma sinopse alargada do conceito e do programa da exposição, onde se referem alguns autores e peças em exposição - com comentários a seu respeito que às vezes informam e outras apenas visam argumentar a orientação ideológica da mostra de Jorge Ribalta. Parte dele tem uma penosa escrita académica servida por uma tradução pouco fluente. Também tem incorrecções inaceitáveis:
"As vítimas da sociedade constituem o tema por excelência do género documental, desde a sua aparição enquanto género nos finais dos anos de 1920". De facto, o género documental já existia antes de se reconhecer como "género" - com as fotografias de Lewis Hine, desde 1907, e antes dele com as de Jacob Riis, desde 1887 (How the Other Half Lives, 1889), e antes com as de John Thompson (Street Life in London é de 1877 - que foi mostrado em Lisboa nos seus woodbutytypes da edição original, pela Ether em 1983?). Outros documentos sociais são realizados pelo caricaturista Henrich Zille, em Berlim, e por Atget, em Paris, como aliás a exposição mostra de passagem entre a 1ª e a 2ª sala. Uma boa história da fotografia fala da National Photographic Record Associaton, fundada em 1897, e do Musée des Photographies Documentaires, de 1894. E há muitas mais documentações que se poderiam citar e algumas que aparecem em secções sucessivas da mostra.
Não é preciso recordar a genealogia toda da fotografia como documento nem ordenar as obras cronologicamente, mas para falar de "Política da vítima" arranjou-se um começo viciado. A importância de John Grierson para o cinema documental em Inglaterra e no Canadá não justifica essa abordagem do documento, que aparece focada com sentido de oportunidade sobre as convulsões sociais do fim das década de 1920 e da Grande Depressão de 1929, que só a II Guerra veio "resolver" (de facto, não houve New Deal que lhes valesse).
Trata-se ali, segundo vai explicando penosamente o "Guia da Exposição" que veio do MACBA, de contrapor as "retóricas documentais reformistas", com que se "instaura uma tradição da vítima", uma "retórica da vítima" proporcionada pelo "trabalho documental reformista promovido a partir do Estado", etc., etc., ao "movimento fotográfico documental ligado ao movimento internacional dos trabalhadores que emerge da Internacional Comunista". A esquerda revolucionária com "um programa materialista para a arte", de um lado (alojada nos discursos universitários do politicamente correcto ou conforme que se estendeu à gestão das instituições museológicas...), e a traição (?) reformista do outro. Esta conversa de fachada progressista que é hoje o discurso do poder institucional é, como os activos tóxicos da banca, um logro.
"A partir dos pressupostos revolucionários da procura de uma ruptura epistemológica e perceptiva, através da imagem que aspira à construção de um novo espectador, e das teses produtivistas, favoráveis a uma arte mecânica e imersa nos processos de produção - em oposição ao espaço autónomo da arte burguesa - o movimento da fotografia dos trabalhadores promove uma educação da imagem e da auto-representação dos trabalhadores, como forma de emancipação e de apropriação dos meios de (re)produção." Pág. 17 do "Guia"(!?)
Há limitações evidentes na apresentação desta exposição que parecem indicar que se agravam algumas carências de recursos e de meios humanos na estrutura do Museu Berardo (falta de meios informativos, traduções deficientes, etc) - mantenham a entrada livre e coloquem caixas para contribuições voluntárias, como nos museus anglo-saxónicos (e desde a inauguração que se fala nisso...). Mas há outras limitações da mostra que decorrem da retórica esquerdista do seu comissariado.
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