Vem sendo estimulante acompanhar o blog dedicado à crítica e à reflexão sobre arte que desde Janeiro se publica em http://infinitoaoespelho.blogspot.com/ com um crescente número de colaboradores, anónimos ou não. Alargam-se os intervenientes nesta área, face ao desinteresse da imprensa; expressam-se vozes mais novas, alongam-se os escritos, sai-se (um pouco) das rotinas escolares de catálogos e press-releases. Há menos opiniões polémicas do que se desejaria; em geral, a reverência substituiu a ideia de inconformismo que antes se esperava de quem chega - mas de facto a competição é agora sujeita às regras dos poderes, e estes fazem-se respeitar lembrando que o espaço está preenchido. (Os poderes instalados já não são vistos como adversários a derrubar - eles são ao mesmo tempo a escola, o mercado, o museu, a história, etc, num sistema que nunca foi tão unificado e dominador; claro que existem caminhos dúbios ou resolutamente exteriores, mas são "perigosos".)
Neste domingo apareceu aí a oportunidade de rever a instalação de HZ no CAM, que eu acho um desperdício provinciano de espaço, mas que A. Cancela percorreu com disposição atenta. Valoriza-se a ironia de um olhar cerebral sobre o fazer artístico, sobre a história, a teoria e os discursos da arte. Buscam-se razões para dar importância a pinturas falhadas enquanto pinturas (o que deverão ser elas mais, além de serem objectos para preencher instalações?) e, com a sorte de ouvir umas dicas de meia visita guiada, algumas informações tornam-se possíveis razões de interesse para justificar um itinerário. Parece-me que se pede pouco a um artista a quem se oferece um museu, mas visivelmente já nunca se espera muito de um artista ou de uma obra - apenas uma justificação. Usar como ilustração um espaço vazio é uma lúcida apreciação crítica.
Sobre a exp. do CAM, HZ, Kokoschka, etc: aqui
São a escolha da colecção e as obras acrescentadas que mais me interessam neste episódio (porque o resto é pouco ou nada - e porque no seu olhar autocrítico sobre o devir da arte é aí que Z. parece buscar alguma razão para além das tácticas académicas que cumpre).
À partida não notei que a sucessão das obras é rigorosamente cronológica: foi um dado omitido nas apresentações e aquela cronologia oculta, de facto, um exercício muito laborioso de selecção (por exemplo escolhe-se uma peça com plásticos de João Vieira de 1971, mas outras datas estavam à disposição, e em muitos casos não são as obras mais representativas ou originais que lá estão - há algo de paródico naquela selecção às vezes inesperada). Para além da extensão e da qualidade das obras britânicas, aquela ão parece ser uma opção preguiçosa, tal como não o é o alinhamento centrado e regular das obras. Perdem-se os agrupamentos por estilos, escolas ou movimentos (embora eles apareçam reconhecíveis em obras dispersas) e ganha-se o reconhecimento da respectiva sobreposição temporal, da longevidade das carreiras, da ausência de cortes ou rupturas ou novos "paradigmas" - tudo se prolonga e equivale e é bom re-conhecê-lo para lá das facilidades retóricas das periodizações.
Alguma coisa se quer dizer quando no piso superior se alinham 27 obras dos anos 60, a que se seguem 9 dos anos 70 (incluindo o fabuloso Kokoschka vindo de Londres), e só 7 dos 80, e 2 dos anos 90 (Gilliam Ayres e Paula Rego), para se acabar com uma só dos anos 2000: o "quadro" de Cabrita Reis que aparece separado da colecção pela cortina e aproximado da obra própria de HZ, e não por acaso ele se vê como um vazio e não como obra, como moldura em torno de um vazio, a parede nua. 27 - 9 - 7 - 2 - 1 (sem as esculturas) é um caminho de desertificação crescente, de extinção... Uma escolha inversa das antologias habituais que valorizam proximidades e actualidades.
Além de tudo isso, Z. escolheu Kokoschka (trouxe uma das obras de referência da colecção da Tate). Eu julgo que ele confronta as suas pinturas falhadas com o exemplo de uma excelente pintura, de uma pintura bem sucedida - e talvez não por acaso com uma pintura auto-referencial, um auto-retrato, uma pintura tardia na obra de um pintor que atravessou o séc. XX, uma pintura de uma pungente ironia, etc. Onde à porta de um pub o velho pintor pede à morte mais algum tempo de vida e/ou de arte. Nada é deixado ao acaso. É o quadro de Kokoschka que dá sentido ao espectáculo de irrisão que se mostra no CAM.
No final - como sublinha A.Cancela, talvez com outra intenção - ganha outro sentido o ralo de Gober ao centro da parede final, por onde se escoa o lixo artístico, o dele mesmo, de Zobernig, e aquilo que preenche a maioria da oferta institucional. É demasiado subtil o ponto de vista de Z: o pessoal satisfaz-se com o lixo do mundo da arte e aprecia o ralo por onde ele circula (o Kokoschka não o reconhecem).
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