Começa a esgotar-se o calendário do "Arquivo Universal" com as suas 1200 (?) fotografias e outras edições, filmes, etc - até 3 de Maio. Vou regressando ao CCB e continuo a espantar-me com a descarada manipulação ideológica da história da fotografia que se pratica na exposição vinda do MACBA, isto é, com o esquerdismo de culto universitário constituído como um pretenso saber hegemónico em alguns circuitos artísticos e que aqui submete a "documentação" fotográfica exposta a classificações inaceitáveis e a informações falseadas.
Desde o início da mostra e desde o primeiro texto de parede: "Política da vítima 1907-1943":
Isto é em primeiro lugar mal escrito (e mal traduzido), e inapropriado para um texto de parede, que deve ser informativo e acessível a um público alargado. É, aliás, uma adaptação preguiçosa do texto do "Guia da Exposição", pág. 12. Depois, é despudoradamente falso. O género documental não surgiu para representar as classes trabalhadoras e os desfavorecidos... Aliás, o que será o "género documental"?
"...griersoniano"?! De John Grierson, documentarista britânico (1898–1972, n. Escócia) muitas vezes referido como o pai do filme documental britânico e canadiano, como diz a Wikipedia: "Grierson coined the term "documentary" in writing about Robert Flaherty's film Moana (1926) (New York Sun, 8 February 1926: "Of course Moana, being a visual account of events in the daily life of a Polynesian youth and his family, has documentary value."). Ora isto passa-se a propósito do cinema, com o "documentário", e é um absurdo falar da aparição do "género documental" nos finais dos anos de 1920, quanto à fotografia.
Toda a exposição, aliás, vai mostrar exactamente isso mesmo, situando os projectos documentais (topográficos, artísticos, antropológicos, etc) desde o início da fotografia - e antes já havia pintura e desenho documentais, como se deve saber.
Haverá dois propósitos nesta manobra de datação falsificada: 1 - contrariar a possível ideia de uma continuidade da atitude ou prática documental - e também de uma tradição documental, entendida como uma condição (ou essência) documental/testemunhal invariável, que atravessasse os tempos sem alterações substanciais. 2 - depois, para sublinhar a natureza "de classe" da negação daquela continuidade ou tradição, nada melhor que re-fundar a fotografia documental no contexto da oposição entre o estado dito proletário (a URSS de Stalin) e os estados chamados burgueses.
Claro que não existe (nem ninguém pretendeu que existisse) uma continuidade linear ou mecânica desde os primeiros documentos - e até poderia ser uma boa estratégia montar o itinerário da exposição sobre os diferentes "inícios" da prática documental (as diferentes áreas de interesse, as alterações de processos técnicos de impressão e edição, o instantâneo, as rupturas autorais, etc), e mesmo começar pela explosão do documentário social associado à Grande Depressão de 1929 e aos seus efeitos mundiais, como de facto aí acontece - e os paralelos possíveis com a actual crise só reforçam o interesse desse tema. Mas seria sempre preciso balizar um percurso construído como um puzzle com um roteiro inteligível e com informações e tabelas esclarecedoras - assim, com o seu imenso material em exposição e a escassez de informações, a mostra é um acto de arrogância intelectual.
Sucede, entretanto, que é hoje inaceitável - depois do termo da Guerra Fria e da desagregação da URSS - submeter a prática fotográfica documental que se afirma nos anos 30 (com o uso das novas câmaras de pequeno formato e o aparecimento da imprensa ilustrada de massas, em sincronia com as novas tensões sociais de então) a uma retórica de oposição simplista e demagógica entre perspectivas reformistas, por um lado, e outras ditas revolucionárias ("trabalhistas"?), ligadas ao "movimento internacional dos trabalhadores que emerge da Internacional Comunista" (pág. 16 do Guia). Essa conversa teve o seu tempo e falhou; esteve associada a graves equívocos históricos (a demora em considerar o nazismo como o principal inimigo, por exemplo; a recusa de alianças e a prioridade aos interesses dos partidos e das suas hierarquias; a subordinação das esquerdas nacionais aos cálculos da burocracia soviética, etc - e a crimes também, numa longa história de depurações) e é hoje uma relíquia que só subsiste entrincheirada em algumas cátedras e nas tácticas gestionárias do sector das instituições artísticas. É uma relíquia museológica em vários sentidos.
Jorge Ribalta não tirou da sua própria cabeça esta confusão entre documental e documentário (para situar o seu início no fim da década de 1920), e toda essa retórica esquerdista de ataque supostamente "revolucionário" ao programa reformista do New Deal de Roosevelt. A coisa vem mais bem escrita no livro de John Tagg The Burden of Representation (NY 1988) / El Peso de la Representación (ED. Gustavo Gili, Barcelona, 2005 - Ribalta é um dos assessores da colecção). De passagem, na Introdução, refere-se que "o termo 'documental' provém do uso cunhado pelo crítico cinematográfico John Grierson em 1926" (pág. 14), e por aí se fica quanto ao Grierson, que para o caso pouco importa. Logo depois diz o mm Tagg que, "obviamente, o documental aproveitava métodos e práticas de documentação utilizados ao largo da história no crescimento e nas lutas das sociedades urbanas, industrializadas." (pág. 17) O que lhe importa é o ataque ao "movimento documental do Estado paternalista do New Deal" e ao reformismo político em geral.
É mais acertada a referência que se encontra numa conhecida introdução escolar ao estudo da fotografia - Photography: A Critical Introduction, edited by Liz Wells (Routledge, 1996, 3ª ed. 2004) - ao facto de quase toda a fotografia que se faz no séc. XIX já ser o que depois (?) seria designado como documental (documentary), como assinalou Abigail Solomon-Godeau, outra autora pós-moderna (p. 69). Aí se faz também referência a John Grierson e ao cinema, e à extensão do uso da palavra à fotografia (a palavra teria - diz-se - uma tendência imperialista para se associar a diferentes espécies de fotografia...).
Esta abordagem é específica do inglês escolar e não tem incidência nos estudos em francês. Os documentos de Atget ("Documents pour artistes" dizia a tabuleta à sua porta) não deixavam espaço para estas ociosidades escolásticas. É Berenice Abbott (com o galerista Julien Levy), em 1929, quem leva as fotografias de Atget para Nova York... O género documental não surgiu para representar as classes trabalhadoras
e os desfavorecidos, mas representou-as quase desde o início da fotografia (a pintura também o fazia...). A ideia de "tradição da vítima" tal como aqui se usa é uma fraude política.
1 Documentos e utopias (MACBA, Barcelona)
2 Museu Berardo: documentos (a crítica do Le Monde)
3 Museu Berardo: Arquivo Universal
4 Fotografias e documentos
5 O documento é vermelho?
6 À atenção de (os álbuns não identificados de Eduardo Portugal)
Concordo contigo. Estas citações do cinema a propósito da fotografia (e vice-versa) prestam-se a confusões lamentáveis e não deviam ser utilizadas nunca fora do seu contexto. A fotografia, mesmo a 'documental', tem muito, muito pouco a ver com o cinema.
Posted by: Luisa | 04/13/2009 at 22:33