Gosto deste tipo de exposições, de artistas em geral desconhecidos (como serão desconhecidos mais tarde, em geral, os artistas de hoje...) e de um país distante e periférico (como é Portugal - mas mais periférico do que a Roménia, aliás).
Victor Brauner é o único grande nome "internacional" representado - é o artista mais conhecido da vanguarda romena (depois de Brancusi, que não sei se foi um artista de vanguarda - e que não figura na mostra, de pintura apenas), mas esta imagem não é exactamente (ou só à primeira vista?) a melhor apresentação da exposição, apesar da sua facilidade gráfica e de pôr em equação várias pistas com interesse (tradição vs modernização das "linguagens"; fórmulas modernas e estilo próprio, etc):
Victor Brauner, "Adão e Eva",1923, 70x100 cm, ICEM, Tulcea - (VB tinha então 20 anos e era um estudante informado e aplicado)
"As Cores da Vanguarda – Arte na Roménia 1910-1950", no Museu do Chiado. Até 21 de Junho.
É uma extensa mostra de 70 obras de numerosos pintores que é apresentada pelo Instituto Cultural Romeno de Bucareste (e a sua delegação de Lisboa) e corresponde à adaptação para itinerância de uma exp. homónima produzida para um museu tb romeno, de Sibiu, Transilvânia, por ocasião da capital cultural de 2007. De Lisboa seguirá para Roma e Praga.
Como se diz na apresentação do comissário Erwin Kessler, a exp. pretende-se uma investigação histórico-artística e não isolou as vanguardas romenas do período entre as guerras do séc. XX face ao seu contexto de intervenção; pelo contrário, percorre o horizonte mais alargado dos modernismos locais (desenvolvendo a ideia de um "modernismo clássico") e mesmo de algum tradicionalismo (às vezes referido como o modernismo conservador e tradicional). Trata-se de uma exp. de pintura, e apenas de pintura, que não se socorre da exibição das revistas e dos manifestos e outros testemunhos gráficos da vanguarda romena - é certo que nem sempre a chamada vanguarda se dá bem com o formato e as condições do quadro, o que aqui se nota com frequência. Mas essa dificuldade é um dos trunfos problemáticos da iniciativa.
Entretanto, a mostra é acompanhada por um grande catálogo que não facilita o possível acesso às obras, porque, em vez de uma síntese construída sobre as peças expostas, remete para uma história nacional complexa e desconhecida - será o catálogo da mostra original, num contexto expositivo mais amplo e ancorado no pp país. Falta um sumário biográfico sobre os artistas presentes e um roteiro que torne mais claro o itinerário com um mínimo de referências ilucidativas (a falta de apoio ao visitante tem sido uma regra dos museus portugueses, para lá das possíveis visitas guiadas... preguiça, falta de meios, má vontade, cansaço, desmobilização, ou tudo junto?). Por outro lado, a exp. adapta-se com certa dificuldade ao espaço do Chiado, ao condensar as 4 secções ordenadas do catálogo em 3 núcleos mais largos por onde se dispersa uma sequenciação menos clara.
Da Roménia que visitei "oficialmente" nos tempos de Ceausescu lembro-me vagamente de El Greco e mais algum pintura antiga num museu nacional com algum importante património que me surpreendeu, passando-se depois para o realismo socialista aplicado nos retratos colectivos dos dirigentes - os guias iam apontando conscienciosamente todos os que tinham desaparecido na URSS ou por suas ordens. Era óbvio quem tratavam como o inimigo.
Uma das questões interessantes que aí se põe (em especial a partir daqui) é a relação com o centro, que na altura é Paris. A exp. inclui apenas obras deixadas na Roménia e das colecções nacionais, mas só Victor Brauner e Marcel Iancu ou Janco (além de Brancusi e Tzara) tiveram maiores destinos no exterior (4 a 1, ou 2 contando Amadeo e Vieira - mas há ainda Mircea Eliade, Ionesco...). Arthur Segal (1875-1944) foi tb um emigrante desde cedo e de interessante itinerário, mas menos notório - Berlin Secession em 1904, Novembergruppe de 1920 a 31, Bauhaus em Dassau, etc - e aparece aqui com duas telas pós-impressionistas, de 1910 e 1917. Marcel Iancu (1895 – 1984) comparece depois de Dada Zurique (regressa em 22 e em 44 foge para a Palestina, onde se instala) - as duas telas expostas são já de 27 e 30, de uma figuração narrativa e com humor, modernizada pelas fracturas e reconstruções cubistas. Criara a revista Contimporanul, influente nos meios literários artísticos modernistas de Bucareste e com colaboração internacional.
a revista de Marcel Janco, 1922-32, e um site bem informado
http://www.dada-companion.com/journals/per_contimporanul.php
Victor Brauner (1903-1966), que foi surrealista famoso em Paris, vê-se aqui a percorrer muito novo vários estilos pós-cubistas tardios, com naturais dificuldades narrativas nas cenas bíblicas e uma impressão de formulário ilustrativo e esquemático noutros casos, desde 1923, até chegar a uma tela de 1934 e já na maneira própria: A Chama Azul, num espaço-paisagem metafísica e dois personagens em grande plano, um manequim e um corpo visceral, sem exterioridade. Esta é uma obra já "representativa".
Outras direcções melancólico-oníricas (surrealizantes) aparecem num quadrinho isolado de Jules Perahim de 1930 (falta um índice de artistas, com dados individuais - neste caso: 1914-2008!!! e uma acidentada carreira), próximo de outras visões fantásticas ou de pesadelo dessa década, enquanto Corneliu Michailescu (1887-1965) passa por duas vistas de imaginação livre, tb de 1930, onde uma figuração poética de gosto popular ou ingénuo pode ser uma aproximação ao surrealismo - de certo modo à maneira de Mário Eloy. Este mesmo pintor aparece antes em ensaios variados, desde 1920, de geometrizações abstraccionista e cubistas, mais ou menos paródicas (1926 e 45), e uma cena religiosa primitivista. É um longo e reconhecido percurso sinuoso e também irregular, aqui com 8 obras, que se encerra numa situação de isolamento marginal voluntário nos anos do realismo-socialista (um texto do catálogo alarga-a com talvez melhores imagens).
Ion Tuculescu (1910-1962) é outra figura singular, que segue uma linha ingenuista e próxima de tradições populares - foi biólogo e médico, pintor solitário, mais valorizado depois de morto. A exp. coloca-o em destaque na sala final ("Fim da estrada"), opondo a sua vitalidade infantil e naif às tardias vicissitudes dos pintores oficiais, ex-vanguardistas.
Ion Tuculescu, O Inverno na floresta, 1940-50
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Apcar (ou Abgar) Baltazar - 1880-1909 - é autor de dois retratos de grupo, frontais econcentrados sobre os rostos, 4 em ambos: As vagabundas (The Tramps) e Camponeses, de 1907/09. Talvez por se tratar de tipos sociais os rostos repetem-se sem se individualizarem, quase como máscaras.
Theodor Pallady (1871-1956), pintor de formação parisiense de nus elegantes e naturezas mortas, amigo de Matisse e Rouault, tb alunos de Gustave Moreau, regressa à Roménia em 1904 mas mantem presença regular em Paris; Gheorghe Petrascu (1872-1949), com uma pequena pintura que promete ligações italianas, ruinas metafísicas e valores plásticos ... Parece ser um importante autor não-vanguardista de um longa obra feita de sólida cor matérica, culta, interessada pela observação das coisas visíveis, e estará sub-representada.
Theodor Pallady (quadro não exposto)
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