Instalar um Museu da língua portuguesa pensado para o séc. XXI no único local sobrevivente da Exposição do Mundo Português, que em 1940, por ocasião dos centenários fundadores da Pátria, celebrou a paz do regime ditatorial de Salazar nos tempos da II Guerra e também a defesa do Império Colonial face a intenções de se redesenharem os mapas do mundo, é um dos deslizes políticos mais dificilmente aceitáveis.
O lugar está carregado de memórias do fascismo, que não devem ser apagadas não só pela importância da sua dimensão histórica como pela qualidade arquitectónica e decorativa das existências edificadas, expressão de um particular compromisso entre artistas modernistas e orientações tradicionalistas próprias da época.
Poderia perceber-se a utilização daquela área (onde bem perto se edificaram outros equipamentos simbólicos por agora contemporâneos, como o CCB), para uma nova função, por hipótese o Museu da Língua, se fosse possível arrasar o antigo edifício da Exposição do Mundo Português, de 1940, adaptado em 1947/48 por Jorge Segurado para aí se instalar o Museu de Arte Popular. Mas não é possível destruí-lo nem mesmo modificá-lo.
A Zona Especial de Protecção do Mosteiro dos Jerónimos salvaguarda-o de alterações, quanto à arquitectura do edifício e quanto aos elementos decorativos que o qualificam: as pinturas murais, os baixos-relevos, esculturas e outros elementos inscritos nas fachadas. Foi esse o entendimento do Igespar (ex-Ippar) quando arquivou em 2007 um processo de classificação do edifício do MAP aberto em 1991. Esta é uma obra de reconhecido valor patrimonial, que tem de ser respeitada, no seu exterior e no interior.
Essa salvaguarda dos elementos arquitectónicos e decorativos tão marcados pela ideologia nacionalista do Estado Novo e do seu momento de afirmação mais exemplar, a Exposição de 1940, resultaria numa provocação inábil e também inaceitável para os países independentes de expressão portuguesa cuja presença se convoca agora. Basta observar com olhos de ver, mesmo com olhos de leigo, o edifício e a sua decoração, para se concluir da inadequação da resolução expressa pelo Conselho de Ministros de 7 de Maio que anuncia a transformação do lugar "num inovador e contemporâneo espaço multimédia e centro privilegiado de promoção da língua portuguesa". Este edifício no seu todo é obrigatoriamente para salvaguardar e manter, sob pena de ser o Estado a atacar o seu
património histórico, com todo o peso de consequências que um tal
exemplo significaria.
Baixo-relevo de Henrique Moreira, 1940
As marcas estilísticas e simbólicas desta arquitectura, o sentido desta decoração exterior, a importância das pinturas murais (não sendo embora as obras-primas dos respectivos autores, como Carlos Botelho e Paulo Ferreira ou Thomaz de Mello) não se compadecem com o desígnio agora enunciado - e visivelmente enunciado sem o suporte técnico de especialistas na história da arquitectura e das artes plásticas da época.
Estudo de Carlos Botelho para uma pintura mural do MAP
Seria de um kitsch dificilmente superável instalar nestes espaços físicos os corredores de ecrãs de plasmas ou interactivos que contarão as aventuras da língua e as proezas da escrita em português. Seria criminoso conservar as pinturas murais do seu interior e ocultá-las por cenários e ecrãs. E nenhuma operação de branqueamento apaga aqui a memória histórica das celebrações imperiais de 1940 e o conteúdo ideológico destas perfeitas demonstrações de um particular e momentâneo compromisso, tardio mas bem sucedido, entre modernismo e fascismo. É como tal que o edifício deve continuar, e exactamente com a reposição de um museu dedicado às artes populares, com o entendimento ideológico que tinham à época recontextualizado pela perspectiva crítica de hoje.
O que para aqui se anuncia não tem suporte histórico, cultural e estético. É um atropelo a valores essenciais e é pelo menos, depois das agressões cometidas no passado, uma equívoca desatenção quanto à dignidade dos que hoje partilham a língua em igualdade de condições.
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adenda: o Museu da Língua Portuguesa - Estação da Luz, em São Paulo ( http://www.estacaodaluz.org.br/ ) é outra coisa, situado num espaço central da cidade, uma estação multimodal, com uma muito vasta área para exposições, e é um enorme êxito de visitantes:
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