Arquivo Expresso 15-08-98
"Pistas para um fim de século "
A renovação da arte espanhola ao tempo da «tragédia de 98», causada pela perda das colónias. O primeiro modernismo e a sua diversidade regional mostrados no museu instalado na Expo'98
OS 98' IBÉRICOS E O MAR
Pavilhão de Espanha, Expo'98
(Até 30 de Setembro)
É UMA insólita opção instalar um museu no interior da Expo, mas foi o que fez a Espanha. Dotado agora de uma entrada separada da que dá acesso, depois de longa espera, ao pavilhão nacional, a visita passou a ser mais fácil e os visitantes menos numerosos, o que torna a ocasião ainda mais recomendável - esta será mesmo uma das grandes exposições do ano, pela surpresa e qualidade das obras expostas, primeiro, e também pelo exemplo da renovação do olhar sobre a arte do século XX que vem orientando a investigação e a actividade dos museus do país vizinho.
De facto, ao contrário do que se poderia esperar numa feira, «Os 98' Ibéricos e o Mar» não é uma selecção mais ou menos arbitrária de glórias nacionais que se veriam mais facilmente num museu de Madrid. É uma mostra original, onde se apresentam 20 artistas com obras que são em grande parte desconhecidas mas sempre de primeira escolha e por vezes de grande formato, oriundas de muito diversas colecções públicas e privadas de toda a Espanha (num caso, do Smithsonian de Washington), organizada em função de um programa coerente, com um catálogo de extrema qualidade e assinada por um destacado historiador de arte, Valeriano Bozal, o autor de Arte del Siglo XX en España (ed. Espasa Calpe, publicada em 1995 em dois gordos volumes de bolso).
Em termos mais mediáticos, o destaque vai para Picasso e a sua Mulher em Azul, de 1901 (ainda anterior, portanto, ao chamado «período azul»), com que a exposição se encerra emblematicamente. Existem, contudo, outros nomes que importa conhecer, menos famosos ou mesmo ignorados e em vários casos desvalorizados depois da notoriedade internacional de que gozavam no início do século, como são, em especial, os de Pinazo, Rusiñol e Regoyos, Mir e Nonell, Sunyer, Clarà, Anglada Camarasa ou Sorolla e Zuloaga.
O seu interesse não decorre de qualquer obrigação sociológica de integrar o génio de Picasso no contexto nacional ou geracional, mas, mais simplesmente, do facto de todos eles serem autores de magníficas obras de pintura ou escultura, mesmo que não tivessem sido pioneiros nem se lhes atribuam contribuições internacionalmente revelantes para o «progresso» da arte moderna, tal como foi canonicamente sintetizado. É esse processo de reexame da modernidade através das condições concretas e dos múltiplos caminhos locais que tem dinamizado a museologia recente (mas não em Portugal) e que a exposição também ilustra.
Regressando ao título, esclareça-se que «os 98» não são os do ano em curso, mas de há um século, cujo centenário tem sido objecto de um vasto programa evocativo e de revisão crítica. Essa é a data do fim do Império, com a perda das Filipinas e de Cuba, e também a ocasião de uma profunda crise de consciência nacional, que então se enfrentava com as causas da sua decadência (numa situação que tem alguns traços comuns com a crise provocada em Portugal pelo Ultimato de 1891).
A reflexão sobre «o problema de Espanha» é então protagonizada pelos intelectuais da chamada Geração de 98, de que fazem parte Pio Baroja, Azorín, Valle-Inclán, Unamuno, entre outros, e incide especialmente sobre as condições do atraso do país no contexto da viragem do século, ou seja, sobre a resistência à modernidade e a distância perante a Europa evoluída. Nessa conjuntura, em que «a Espanha se converte no tema artístico predilecto da arte espanhola» (no catálogo), as imagens dos artistas polarizavam análises contrapostas sobre a realidade social, que em termos esquemáticos traduziriam a aspiração cosmopolita da modernização ou eram o reflexo (e eventualmente a crítica) da «Espanha negra», inimiga da «doutrina europeizadora» e fundada numa essência imobilista e castiça da «raça».
Picasso, «Mulher em Azul», de 1901
Cronologicamente, as obras expostas enquadram o «desastre de 98» através de três gerações de artistas e vão de 1886 até 1916, estabelecendo assim um panorama prévio ao que no Museu do Chiado se apresenta sob o título «As Raízes da Vanguarda Espanhola» - com as presenças coincidentes de Joaquim Sunyer e Manolo Hugué e obras de fases anteriores da evolução de Julio González, Torres García e Picasso. A este período corresponde a designação de «época do modernismo», que em torno do fim de século e com uma dominante tónica simbolista constituiu um primeiro processo de aspiração ou aproximação à modernidade - e é essencial não esquecer as diferenças com a terminologia portuguesa, que usa o título de modernista para o equivalente à posterior vanguarda ou «renovação» espanholas («el arte nuevo», de 1917 a 1936).
O início do modernismo identifica-se com as manifestações da arquitectura catalã que surgem pelos anos 80 (com Doménech i Montaner, Puig i Cadafalch e Gaudí), em termos próximos do que noutros países se designou como Arte Nova. No campo da pintura, não há lugar para a caracterização de um estilo único, uma vez que existem diferentes vias de ruptura com o sistema académico, em direcção ao mercado e ao «gosto burguês», e com a tradição da pintura de história ou o «costumbrismo» folclórico. A historiografia aponta uma primeira geração modernista de que fazem parte Rusiñol e Ramon Casas (não exposto) ou Regoyos, entre outros artistas de inicial formação naturalista, e uma segunda geração que inclui Anglada Camarasa, Isidro Nonell, Joaquim Mir, Manolo Hugué, Sunyer e González, em que se inclui Picasso, que é mais novo mas de afirmação muito precoce.
Para complicar um pouco mais as coisas, o modernismo catalão conheceu, por volta de 1911, um outro movimento de reacção estética designado como «noucentismo» (novecentismo), que se apresentou como a sua «antítese polémica» e com que passaram a identificar-se alguns dos artistas daquela segunda geração. A modernidade então proposta por Eugenio D'Ors toma a forma de uma idealizada defesa do classicismo, num movimento de afirmação nacional que associava a catalanidade com o equilíbrio e a plenitude de uma longa tradição mediterrânica.
Com a palavra «ibéricos», o título» sublinha a emergência ou intensificação dos nacionalismos que se manifestam por ocasião da crise de 98, quando se avolumavam as tensões entre o centralismo arcaizante de Castela e, por outro lado, a Catalunha e o País Basco, muito mais industrializados e cosmopolitas. A exposição assinala bem a distribuição periférica dos vários locais onde se renova a arte espanhola na viragem do século, com um justificado enfoque especial sobre Barcelona, a atenção aos casos de Valência (Pinazo e Sorolla) e de Bilbau (Guiard, Iturriño, Alberto Arrúe e Zuloaga) e um último destaque para a Galiza de Castelao - sempre perante a ausência total de artistas renovadores oriundos de Madrid ou de Castela. «A perda de força e de capacidade de controle do centro permite às periferias afirmarem-se como alternativas renovadoras», afirma Miguel Zugaza, no catálgo.
Anglada Camarasa, «Noiva Valenciana», 1910
Assim, a identificação dos diferentes centros regionais de afirmação da modernidade espanhola não se pode interpretar como um mero panorama localista e, embora atento às dinâmicas de cada região e mesmo aos «sabores locais», é um quadro globalmente cosmopolita que é traçado. De facto, são muito numerosos os artistas que fazem longas estadias ou se instalam no estrangeiro: Regoyos em Bruxelas, Guiard, Rusiñol, Sunyer, Clarà, Anglada, Iturriño e Zuloaga em Paris, onde também residiu González a partir de 1900, etc. A escolha maciça do destino parisiense, em vez dos tradicionais estudos académicos em Roma, marca a abertura do fim de século espanhol. No entanto, o mesmo M. Zugaza considera que «o impulso moderno, representado na aceitação sem complexos das vanguardas impressionistas e pós-impressionistas», viria a ser contrariado «com uma reacção conservadora perante as vanguardas do séc. XX, especialmente contra o cubismo».
Por último, observe-se que o tema do mar que o título também refere não é um mero aceno ao espírito da Expo. Uma primeira vista marítima surge logo a abrir a exposição com o Porto de Barcelona de Meifren y Roig, que é uma paisagem da cidade moderna da autoria de um realista de transição, e outras diferentes abordagens do mar dominam por inteiro a terceira sala da mostra, na grande composição sobre o ócio burguês nas praias de Bilbau, Na Esplanada, de Adolfo Guiard, ainda de 1886, em contraposição com a bem diferente realidade social da Galiza, retratada pelos temas da emigração nos grandes painéis de Alfonso Castelao, já de 1916.
Mais insistente e poderosa é a presença da luz e colorido mediterrânicos, logo na vibrante paisagem pós-impressionista do asturiano e cosmopolita Darío de Regoyos – cuja primeira tela, aliás, ilustra numa áspera paisagem castelhana um dos tópicos centrais da Geração de 98: os frades em procissão coexistem com o símbolo do progresso que é o combóio, na representação dos dois tempos de Espanha. Depois, nas sucessivas cenas marítimas que, em Valência, Ignacio Pinazo e Joaquín Sorolla transformam em notáveis exercícios de liberdade formal e refinamento luminista. O primeiro é o mais antigo artista representado (dez anos mais velho que Henrique Pousão e de confirmado interesse pelo paisagismo dos «Macchiaioli», que conheceu directamente), e é também um das presenças mais interessantes. Quanto a Sorolla, pelas duas telas expostas entender-se-á plenamente porque é que o seu «naturalismo» luminista vem sendo agora libertado do peso da numerosa descendência «sorollesca» para se revalorizar nas suas notáveis qualidades de pintor moderno a herança de Pinazo.
Também mediterrânica, por definição, é toda a representação dos «noucentistas», desde a belíssima e paradigmática paisagem idílica de Sunyer, Mediterràni, de 1910, onde a aspiração classicista se funda também numa informação moderna, e em particular em Matisse, e depois nas esculturas de Josep Clarà, sucessivamente inspirado por Rodin e Maillol, e de Julio Antonio, este de explícito modelo romano na sua arcaizante Vénus Mediterrânea, de 1912.
Fora da temática marítima, que também ilustra o assalto das periferias cosmopolitas ao isolamento continental de Castela, ficam algumas das presenças mais fortes da exposição. Primeiro a de Santiago Rusiñol, nome central do primeiro modernismo catalão, com uma Figura Feminina, de 1894, de sólido gosto simbolista. Depois, o Joaquim Mir de A Catedral dos Pobres, com a Sagrada Família de Gaudí em construção, exactamente de 1898 e que é uma peça chave da pintura catalã, onde o interesse pelo tratamento da luz se associa a uma temática social que continua presente nas ciganas pintadas por Isidro Nonell.
Outro pintor de Barcelona é Anglada Camarasa, que teve longa carreira parisiense (com quem se terá cruzado Amadeo Souza Cardoso na Academia Viti, por volta de 1910) e esteve especialmente relacionado com a secessão vienense. Noiva Valenciana, de 1911, converte uma referência regional numa pintura sofisticada, onde a cor e a matéria se afastam do projecto naturalista.
Quanto a Zuloaga, que Unamuno, em 1912, classificava como o pintor «mais profundamente específico e diferencial da Espanha de hoje», o quadro Celestina, de 1906, é uma peça exemplar de um percurso que se via como «um espelho da alma da pátria» (idem), tão identificado com as profundezas da «Espanha negra» como com a grande tradição da pintura espanhola, de Zurbarán a Goya. Símbolo da resistência às doutrinas europeístas, em oposição ao Sorolla solar, seria Zuloaga o pintor preferido pelos intelectuais da Geração de 98, irmanados na mesma «busca do carácter e da essência daquilo que tanto se debatia na época: a raça ou, dito de outro modo, 'o espanhol'» (catálogo).
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