Sobre a excelente exposição de pintura sobre papel de João Jacinto na Gal. João Esteves de Oliveira - Rosa Rosarum -, publicou Daniel Melim um excelente texto no blog O infinito ao espelho .
Até 8 de Maio.
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O que me fez lembrar uma entrevista publicada há anos com o mesmo João Jacinto. Acompanhada por algumas imagens (pinturas) roubadas no mm sítio)
Expresso Cartaz de 26/10/2002
"Continuar a pintar"
Antologia de 15 anos de trabalho de João Jacinto
João Jacinto expõe duas direcções de trabalho, pintura abstracta em Cascais e desenhos na Módulo, onde decorreu a entrevista, entre auto-retratos e flores. Começou a expor no 2º ano das Belas-Artes, em Lisboa, e regressou como professor de desenho, prosseguindo entretanto uma carreira de pintor tão discreta como regular, que também tem sido apresentada em galerias estrangeiras.
As duas linhas de trabalho são para si tão opostas como parecem?
Não as vejo dessa maneira. São coisas que se concretizam no final de um modo aparentemente mais diverso daquele que eu creio que seja, mas a sua origem é muito próxima. É uma mera diferença de aparência e nada mais. Se se reparar no modo como a superfície do desenho é tratada, mais do que desenhos chamava-lhe pintura a preto e branco.
75,5 x 59 cm
Mas a representação não tem uma presença decisiva? Nesse sentido, são duas direcções contrárias.
Não são contrárias, são paralelas, pelo menos é assim que gosto de as encarar. Digamos que este é um trabalho mais secreto... Os desenhos são parte do trabalho figurativo que faço. Foram mostrados agora porque havia espaço para serem vistos de uma forma que eu não pretendia que fosse muito afirmativa.
No desenho, a observação é um ponto de partida.
A representação sempre exerceu algum fascínio em mim, e sempre tive um percurso paralelo ao que é conhecido. É outro pretexto para trabalhar. O que acho mais distante do que se passa no outro trabalho (em Cascais) é exactamente esse ponto, a observação, e, por outro lado, a construção de uma imagem em função dessa observação. Tudo o resto não me parece que seja muito diferente. Talvez algumas coisas sejam postas de um modo mais óbvio, mais expressivo, mas não as distingo muito.
A pintura situa-se no que se pode chamar a tradição da abstracção.
Sim. E este (na Módulo) na tradição da figuração; nesse sentido, também são parecidos. Ambos lidam com questões que têm a ver com a tradição e depois acabam por a subverter, na medida em que desviam esses caminhos. A relação com a tradição da abstracção e a da figuração é a mesma que tenho com a tradição da pintura: é um longo passado que nos pesa ou que nos torna mais leves e com que nos relacionamos diariamente; depois há figuras ou períodos de eleição que marcam mais ou menos e que posso eleger ou não.
Na pintura não-representativa não parece trabalhar sobre um programa, uma ideia...
Não tenho um programa específico a partir de um ponto, quer em relação à figuração quer à abstracção. O programa é a continuidade, como o João Pinharanda refere no texto que escreveu, e nesse aspecto poderá ter a ver com as questões postas pelo minimalismo e pelo expressionismo abstracto: a questão de uma extensão, que no caso do expressionismo norte-americano não se fica apenas pela extensão da superfície do quadro, pela grande dimensão; e a ideia do minimalismo, de uma coisa depois da outra, daquela composição que não é composição... Nesse aspecto sim, poderei pegar nessas duas questões, e o projecto maior é o da continuidade, continuar a ser possível...
Continuar a pintura ou continuar o seu trabalho?
O meu trabalho, porque não me incomoda nada se a pintura passar a ser impossível. Há sempre coisas que se tornam impossíveis...
A continuidade coexiste com a exigência da diversidade. Não se pode continuar sempre a fazer o mesmo.
Não sou tão peremptório nesse tipo de afirmações. Ambas as coisas têm as suas dificuldades, e eu acharia fascinante que alguém conseguisse fazer incessantemente a mesma coisa. A continuidade de que falo é outra: se eu tenho um desejo permanente de fazer coisas, tenho de arranjar formas de que elas sejam possíveis e de não as fazer de uma forma estúpida, o que implica obviamente uma continuidade e uma diversidade. Há coisas que lentamente vão sofrendo alterações, às vezes um passo à frente e dois atrás...
Não existe um objectivo ou um ponto de chegada?
Não, não anseio por nenhum ponto e não busco qualquer coisa...
Quer dizer que o seu trabalho é, muito concretamente, uma relação com os materiais da pintura?
Uma coisa é o que dizemos assim de uma forma despida, vazia, mas é óbvio que as coisas, quando são feitas seriamente, nunca são tão nuas. Não são só os materiais e o modo como eles se comportam. Há coisas que estão por trás, que me levam a fazer desta ou daquela maneira, mas essas coisas são minhas e ninguém tem nada com isso, nem acho que sejam muito importantes para o entendimento ou a valorização ou desvalorização do trabalho. Será o modo como me relaciono com as coisas o que me leva a fazer esta ou aquela coisa, e é óbvio que penso que de algum modo elas transparecem no trabalho. Não tenho a intenção de as afirmar, não me interessa nada que tenham algum peso ou algum protagonismo na valorização do meu trabalho, mas elas devem existir, senão estaria quieto em vez de trabalhar. Alguém perguntou ao James Rosanquist (já nesta fase que é considerada de decadência absoluta) porque é que, depois de um percurso tão sólido, continuava a pintar, e ele disse que ainda tinha sonhos. Eu acho que é um pouco assim. Só consigo conceber as coisas de duas formas: ou há um projecto muito concreto, que pode ter a ver com uma dimensão profundamente interior (ou não), ou existe uma necessidade de fazer coisas e de as gerir, de as fazer com um sentido... Eu corro mais desse lado, tenho necessidade de fazer coisas, nunca quis outra coisa senão ser pintor e fazer pintura. Sinto verdadeiramente essa necessidade. Tenho todos os dias vontade de ir trabalhar e tento fazer alguma coisa com a vontade que tenho.
+ a uma "caixa"
"A matéria no tempo"
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Outras notas
Centro Cultural de Cascais e Módulo, Lisboa
19/10/2002
Em Cascais exibe-se uma antologia da pintura de João Jacinto, que vem sendo regularmente exposta desde 1987 pela Módulo, com 14 mostras individuais desde essa data, a que se juntam outras regulares exibições no estrangeiro. Nascido em 1966, é um pintor com um itinerário tão pouco mediatizado como seguro, a que a crítica sempre prestou atenção, embora sem o promover à posição de expoente de uma qualquer década ou conjuntura. Agora, a reunião de várias dezenas de pinturas e a edição de um catálogo-livro com um extenso texto de João Pinharanda (com o design gráfico sempre excelente de Vera Velez) são a oportunidade para reconsiderar o seu lugar no contexto da arte actual, atribuindo-lhe o protagonismo que merece, para além das flutuações temporárias das estratégias da mediatização e da rotação dos nomes institucionais (a obra de J.J. ganhou o reconhecimento e a sua sustentação no âmbito do mercado, graças à atenção do coleccionismo privado).
A presente exposição constitui um projecto conjunto com o Museu de Badajoz (MEIAC), que acolherá no início do próximo ano, com o mesmo catálogo, uma diferente selecção do seu trabalho; em Cascais deu-se prioridade à apresentação de obras que não tinham sido mostradas em Lisboa e também à produção mais recente. Nela se prolonga uma experiência muito pessoal da pintura, onde o trabalho com os materiais se orienta numa direcção de pesquisa muito concreta e empírica, sedimentando pigmentos e texturas sobre o suporte do quadro, numa interminável e sempre diversa criação não representativa, mais do que «abstracta».
Entretanto, reúne-se na Módulo uma produção paralela e confidencial de desenhos a carvão e óleo onde a montagem faz alternar auto-retratos e composições florais. A exposição «O Rosto da Máscara» (CCB, 1994) tinha já desvendado essa direcção alternativa da obra de J.J., mas esta mostra não deixa de constituir uma boa surpresa. Duas notáveis exposições a que se voltará em próxima edição.(Cascais, até 10 Nov.; Módulo, até 14 Nov.)
Módulo - 15/4/89
Depois da surpresa, da frescura de um discurso novo, um trabalho que aprofunda alguns dados iniciais e busca aberturas a outras experiências — J.J., com um conjunto de pinturas em transição, ensaia novos valores matéricos, altera regras de composição e efeitos espaciais. Com a qualidade de não se fixar em formulários com êxito, mesmo os seus, nem de procurar dependências fáceis.
Módulo - 04-03-95
Quatro telas de razoável formato e outros trabalhos de menor escala,
sobre tela e papel, testemunham a evolução recente de uma pesquisa em
torno de uma pintura praticada como criação de superfícies matéricas,
tendencialmente monocromáticas e de uma crescente austeridade de
efeitos texturais. Eliminando a incorporação de referências exteriores
e as marcações estilísticas, uma crescente economia sublinha a
densidade irredutível de cada obra, fechada sobre os seus próprios
processos e tempos de construção.
Módulo - 27-01-96
Uma prática da pintura matérica que se encontra com a tradição do monócromo numa perspectiva de trabalho que não se auto-limita na serialidade e no reducionismo puritano. Na variabilidade dos grandes formatos, o pintor continua a consolidar a densidade pictural das suas texturas irregular e aleatoriamente trabalhadas, na sedimentação não ilusionista de materiais e pigmentos, enquanto uma parede inicial de pequenos trabalhos estabelece um amplo quadro de investigações em aberto.
Módulo - 04-04-98
Numerosos muito pequenos formatos e apenas uma tela maior (outras
foram-se dispersando, em Colónia e outros lugares) prolongam, desde a
anterior individual de 96, o percurso seguro e também sempre discreto
de um jovem artista que tem trabalhado os valores matéricos, cromáticos
e texturais da superfície do quadro, entre as margens largas do
monócromo, do informe e do «muro». Usando apenas o óleo (sem adição de
outras matérias), J.J. trabalha os modos, tempos e efeitos da
impregnação da tela, de secagem e das sobreposições, usando ou não as
marcas do pincel, num trabalho laboriosamente artesanal, sem ser nunca
rebuscado ou artificioso: o quadro é o espaço recortado de uma película
plástica mais ou menos densa e contínua, percorrida por rugas, pastas,
bolhas e transparências, onde confluem a intenção e o acidente na
manipulação algo alquímica dos materiais.
Gal. Forma d’Arte, Estoril - 01-10-2005
«Acontecimentos de pintura», chamou João Pinharanda às suas telas, por ocasião da dupla antologia que em 2002-03 se viu em Cascais e Badajoz. O que poderia ser uma designação generalizável a toda a pintura que não quer ser (apenas) imagem descritiva tem aqui um sentido performativo essencial. A tinta enquanto matéria plástica e colorida assume um protagonismo radical em quadros que acontecem por aparente estabilização dum magma feito de pigmentos e óleo, por entre acaso e intenção. A pasta avoluma-se em relevos e pode «escorregar» irregularmente do suporte, pode sedimentar-se em estratos horizontais entre secções da tela às vezes apenas aflorada pela cor, pode ser fragmento de parede com as suas manchas acidentais, pode solidificar em pregas e em películas que se rasgam sobre massas informes, pode aperceber-se como turbilhão de matéria cujo movimento se deteve por alguma desconhecida razão, ou, outras vezes, deixar-se ler como vestígio de paisagem ou de mapa, como chão e nuvens. A diferença constante dos resultados do que poderia ser (apenas) modo de fazer, a surpresa de cada obra concreta face à constância do processo, a variabilidade dos acontecimentos de pintura asseguram o permanente interesse do trabalho de J.J. Com esta exposição, a galeria renova-se como prolongamento da programação da Módulo.
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