Noutros domínios (sejam auto-estradas, escolas ou orçamentos) há audição de entidades representativas, pareceres técnicos, condições de diálogo (mesmo quando o diálogo é liminarmente recusado ou instrumentalizado por oposições). Na cultura - e em particular quanto a deliberações de longo alcance no tempo - as decisões são aleatórias e levianamente (in)justificadas: a srª ministra gostou do Museu da Língua - Estação da Luz em São Paulo, e deslumbrou-se com os dourados do Hermitage de São Petersburgo, já esquecida dos vermelhos de Leninegrado. Foi o que bastou para se meter em embrulhadas penosas de curar.
Neste caso do Museu de Arte Popular, que em 2005 se quis (!!) entregar ao comendador Berardo para alojar a colecção que foi afinal para o CCB (esta foi uma decisão justa tomada a nível superior e cujo êxito se confirmou), a argumentação informada foi sempre contrária à ideia de o substituir pelo Museu da Língua, ou Mar da Língua (!?). E ficou sempre sem resposta, nem mesmo da parte do actual director do Instituto dos Museus - e da Conservação (?!), Manuel Bairrão Oleiro, também surpeendido com Coches e Cordoarias, mas com grande "resistência" (tentando evitar males maiores?) .
Decoração mural da sala de Entre Douro e Minho, por Tomás de Mello (Tom) e Manuel Lapa
Um dos textos mais esclarecedores já publicados sobre o caso foi da autoria de Raquel Henriques da Silva, que tinha sido directora do Instituto Português de Museus entre 1997 e 2002, e que, por sinal, esteve à beira de ser secretária de Estado da Cultura com o actual ministro (*). Saíu na revista "L+Arte", onde mantém uma coluna mensal de opinião, mas cujos sumários e arquivos não estão disponíveis na rede.
DO MUSEU DE ARTE POPULAR, DO MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA E OUTRAS QUESTÕES
Raquel Henriques da Silva, in L+Arte, Novembro 2006, página 18
"O Museu de Arte Popular (MAP) foi inaugurado em 1948, para mostrar a diversidade histórico-geográfica das artes populares, dentro da visão deliberadamente simplificada que delas teve o Estado Novo de Salazar e António Ferro. O pequeno edifício, bem como a sua museografia, são projecto do arquitecto Jorge Segurado e a decoração (grandes painéis que preenchem a quase totalidade dos alçados) foi assegurada por pintores modernistas que, desde os anos 30, trabalhavam para o SPN (Secretariado de Propaganda Nacional), recuperando o espírito da Exposição do Mundo Português (1940), particularmente dos núcleos das “Aldeias Portuguesas”.
Diversas razões contribuíram para tornar este Museu um projecto mal sucedido, embora, em bons anos, amado pelos visitantes: a pobreza do investimento inicial que não teve nem reforço, nem continuidade; a desconfiança com que as suas colecções foram sendo encaradas pela nova etnologia portuguesa que privilegiava os contextos antropológicos em detrimento do folclore de matriz tardo romântica; a incerta tutela, assegurada pelo Secretariado Nacional de Informação, herdeiro do SPN, conotando, com especial acutilância, a ideologia e a decadência do regime. Em tempos recentes, a má estrela do MAP foi escurecendo mais: sem obras de manutenção, o edifício, de alicerces frágeis, degradou-se, obrigando ao semi-encerramento ao público que se mantém, sem que tenha sido possível concluir-se os trabalhos de consolidação, o estudo rigoroso das colecções e a definição da sua reapresentação museológica.
A dificuldade de lidar com esta herança – que tanto espelha as fragilidades de projectos culturais estado-novistas como de políticas pós 25 de Abril – tem permitido que, de vez em quando, se pense fechá-lo definitivamente, guardar não se sabe aonde as suas colecções, destruir o que resta da museografia modernista de Jorge Segurado (à época, muito inovadora e elogiada internacionalmente) e utilizar o belo espaço de implantação para novos projectos à procura de lugar: recentemente, foi o Museu da Moda, depois da Colecção Berardo. Anuncia-se agora que ali se instalará o Museu da Língua, por decisão da Ministra da Cultura.
Sem comentar a vertigem da criação permanente, tendo em conta as intenções anteriores, considero esta a que melhor poderá contribuir não para matar um museu, com inegável valor histórico e patrimonial, mas para o ajudar a renascer. Para isso, é necessário que o projecto não seja desenvolvido apenas sobre a feliz experiência brasileira no Museu da Língua Portuguesa de S. Paulo. O Museu Nacional de Etnologia (MNE) possui extraordinários arquivos, nomeadamente sonoros, do nosso património linguístico que, certamente, serão indispensáveis para ancorar um Museu da Língua Portuguesa. Por outro lado, o MNE possui colecções complementares às do Museu de Arte Popular que, ao contrário do que neste acontece, estão estudadas e valorizadas. Estes factos aconselham que o MNE volte a tutelar o MAP, pensando a sua revitalização e indispensável expansão para a área adjacente onde ardeu a Galeria de Arte Moderna de Belém. Ali o pólo Museu da Língua poderá encontrar razão de ser.
Para desenvolvimento do projecto, têm todo o cabimento os contributos do Ministério da Ciência e do Museu da Língua Portuguesa de S. Paulo. Mas o seu a seu dono: a língua é constitutiva da identidade antropológica portuguesa, antes de ser veículo de políticas imperiais; cresce com as expressões científicas e as artes literárias, mas sobre longas práticas de oralidade. Não pode ser abordada, como situação museológica, sem o dinâmico espectro das tradições de trabalho e de festa de sucessivos passados até à extrema abertura dos passados-presente actuais. É, pois, na área disciplinar da antropologia que deve situar-se o Museu da Língua Portuguesa, requerendo contribuições a partir desse pólo estruturador. É também neste âmbito que o Museu de Arte Popular deve ser repensado para dar a ver questões pertinentes da história cultural recente, herdeiras de pesquisas etnográficas oitocentistas, moldadas depois por uma ideologia autoritária e corporativa que apagou os sinais de confronto da representação do popular.
Exprimindo uma opinião, não quero entrar em polémica. Mas não posso deixar de lamentar que a Ministra da Cultura, ao anunciar o museu da língua portuguesa, cite uma série de articulações em que não há nenhuma com os museus que tutela. Será que desconhece a excelência do trabalho realizado em quase todos eles? No caso em análise, desconhecerá que o MNE é parceiro consideradíssimo de organismos internacionais, na Europa, nos Estados Unidos ou no Brasil, como em todos os países onde se fala português, acolhendo projectos, especialistas e estagiários? Cada vez mais empobrecidos e sistematicamente desprezados, pode não ser ficção que venham a conhecer o destino agora enunciado para o Museu de Arte Popular. Para instalar outros sobre paradoxal tábua rasa.
Não se pense que exagero com tão negro vaticínio e olhe-se de frente um indicador acintoso: pois não é que, em tempo de novos cortes orçamentais nos museus, teatros, bibliotecas e arquivos - instalados em dezenas de edifícios monumentais cuja manutenção dificilmente é assegurada - a própria Ministra anuncia que vai alugar a Estação do Rossio para “eventos culturais” pela módica renda de 70 000 Euros por mês?"
Ver aqui ( http://alexandrepomar.typepad.com ) um outro artigo publicado no Público, em 2006
OPINIÃO DE JOÃO LEAL E RAQUEL HENRIQUES DA SILVA em 2006
(*) Uma questão apenas pessoal: Como é que o meu amigo Pinto Ribeiro se deixou enredar nestas trapalhadas?
Comments
You can follow this conversation by subscribing to the comment feed for this post.