Tapeçaria de Jean Lurçat reproduzida na revista "Colóquio", nº 4, Julho de 1959, pág. 1: La Ganipote (o lobisomem)
3 - Texto publicado no catálogo da exposição "Nós na Arte - Tapeçarias de Portalegre e Arte Contemporânea", Museu da Presidência da República
“…criar conforto e encanto”
Foi no contexto artístico muito particular do segundo pós-guerra do século XX que a tapeçaria renasceu em Portugal, associada a uma inovadora técnica de fabrico e a um projecto empresarial específico. Ainda que existam outros produtores menores e se tenham experimentado caminhos mais artesanais para a chamada arte têxtil, a tapeçaria contemporânea identifica-se entre nós com a história das Tapeçarias de Portalegre, iniciada em 1946. No momento do seu aparecer, essa história encontrava-se sincronizada com o movimento da tapeçaria moderna que então irradiava de França, embora não se tratasse de um caso de importação ou dependência.
Paris recuperava a centralidade interrompida pela ocupação alemã e, face à extensão dos territórios devastados, colocava entre as prioridades do momento a reflexão sobre as ligações entre arte e reconstrução. Ao mesmo tempo que se pensava no renascimento dos museus, Jean Lurçat (1892-1966) falava no “despertar de uma arte mural”, logo no primeiro número da revista Arts de France, em 1945. Lurçat fora um notório resistente e era então um artista de primeiríssimo plano internacional, hoje menos lembrado, injustamente.
Portugal ficara à margem da guerra (lucrando com ela) e, por isso, sem a dinâmica das Resistências, mas, enquanto esperava que acontecessem na península as últimas derrotas dos fascismos, observava de perto essas actualidades francesas. Mário Dionísio deu logo entusiástico eco na imprensa da grande exposição de tapeçarias que o Museu de Arte Moderna de Paris realizou no Verão de 1946. Foi uma coincidência que a 26 de Setembro desse mesmo ano Guy Fino e Manuel Celestino Peixeiro constituissem a firma Tapetes de Portalegre.
Nas vésperas da vinda ao Museu de Arte Antiga, em 1952, doutra magna antologia da tapeçaria francesa desde a Idade Média ao presente, Dionísio recordava assim o seu anterior deslumbramento em Paris:
Aquela mostra em Lisboa, e a simultânea consagração de Guilherme Camarinha no Palácio Foz, com a oportuna exibição de encomendas destinadas à Junta Autónoma do Funchal, incluindo o episódio da visita documentada de Salazar, iriam abrir as portas à produção institucional e assegurar a viabilidade empresarial da Manufactura de Portalegre. A realidade política nacional não acompanhava o sentido de progresso e de humanismo modernista da Europa democrática, mas os programas das obras públicas seguidos ao longo dos anos 50 e o gosto decorativo do SNI e dos artistas do Panorama teciam compromissos.
Entretanto, tem de recordar-se que foi em 1949, na IV Exposição Geral de Artes Plásticas, que pela primeira vez se mostraram tapeçarias executadas em Portalegre, segundo cartões de Maria Keil, Júlio Pomar, Lima de Freitas, mais um cartão do próprio Mário Dionísio, por atraso da execução. Foi uma breve antecipação face a António Ferro, que então promovia o seu primeiro Salão Nacional de Artes Decorativas, onde se apresentaram cinco tapeçarias de Almada, Manuel Lapa, Jorge Barradas, João Tavares e Ventura Porfírio – note-se que José Régio, em Portalegre, tinha sido o elemento de ligação a alguns destes artistas. Para o campo da Oposição política e estética que anualmente se reunia na SNBA em competição directa com o Regime, tratava-se de ampliar ao novo campo da tapeçaria a forte aposta feita no sector decorativo das Exposições Gerais.“Artistas das mais variadas tendências uniram-se assim mais uma vez numa sã afirmação de independência perante os problemas da arte e da vida”, escrevia-se então na revista Arquitectura.
No mesmo número, aliás, entre traduções de Le Corbusier e de Gropius, e adiante de páginas da “Carta de Atenas”, um artigo de Júlio Pomar enfrentava a desconsideração em que alguns tinham o decorativo, combatendo o “abastardamento a que chegou [por vezes] a obra de decoração” - “o conformismo, o delicodoce, as soluções mil vezes gastas”- , ao mesmo tempo que invocava o lema modernista da “integração das três artes”, com referência explícita à tapeçaria:
Tal como a referência de Mário Dionísio à “glória da mão” e à “maravilhosa capacidade de criar conforto e encanto” (modos de dizer que se foram distanciando no tempo), esse artigo dá-nos a justa medida da utopia modernista que em modulações variáveis se manifestou ao longo de toda a primeira metade do século XX e respondera às ameaças malignas das guerras e dos totalitarismos. A decoração, a grande decoração, que devia harmonizar as novas condições de fruição da cidade (“radiosa”, segundo Le Corbusier) e expressar os seus valores cívicos, reivindicava-se de uma modernidade plural onde dialogam os abstractos neo-plasticismos de Mondrian e De Stijl com as epopeias revolucionárias dos muralistas mexicanos. Ao mesmo tempo que se considerava continuadora da grande decoração que baliza a história artística da humanidade, vinda dos palácios da Mesopotâmia, dos frisos do Partenon ou das abóbadas de Roma, humanizando os antigos deuses.
Essa modernidade optimista só vacila por efeito lento da Guerra Fria e dos consumismos dos anos 60, quando os valores humanistas desaparecem na teoria do modernismo tardio e formalista sintetizado pelo crítico Clement Greenberg: o projecto social da síntese das artes dá lugar à busca redutora da especificidade de cada disciplina, e a miragem da autonomia do artista rejeita a decoração em favor de uma subversão de que hoje conhecemos bem o ponto de chegada. O livro clássico de Jean Cassou publicado em 1960, Panorama des Arts Plastiques Contemporains, ed. Gallimard, ainda intitulava um dos capítulos finais “O renascimento dos ofícios” (3), quando eles já estavam a ser ameaçados.
Em Portugal, os condicionamentos ideológicos do regime limitavam as ambições dos artistas modernos quanto à decoração de espaços institucionais, confinando a projecção da tapeçaria. Mas em 1958, Lurçat deixou-se surpreender - literalmente - pela qualidade de execução da Manufactura de Portalegre e assegurou encomendas que deram à marca projecção internacional. Um dos primeiros números da revista Colóquio abria com um artigo seu sobre a tapeçaria, a lógica da encomenda e a responsabilidade social (ou mesmo o serviço social) do artista, “que se sente e sabe uma célula activa e reconhecida da Sociedade”. (4) O encontro com Le Corbusier (1887-1965), grande praticante da tapeçaria como “mural do nómada” adaptado às condições da vida moderna, deu-se só em 1964 e a morte veio gorar a colaboração anunciada por uma histórica peça única.
Por esse tempo estava a crescer uma dinâmica empresarial menos dependente do Estado, com a aparição de novos estabelecimentos comerciais, a modernização arquitectónica do país, a aposta hoteleira no turismo, etc. Protagonista dessa viragem desde os anos 50, e prolongando-a na dinamização das instituições culturais a que presidiu (a SNBA, a Gravura), o arquitecto Francisco Conceição Silva viabilizou com a criação do Centro Português de Tapeçaria a ampliação do respectivo mercado. Inaugurada em 1964, a galeria Interior, que se apontou como a primeira galeria comercial, quando a noção provocava a reserva de uma crítica ciosa do seu arbítrio, consolidou de um modo mais pragmático e funcional do que ideológico o vínculo dos artistas modernos com a tapeçaria, nas suas modalidades da encomenda de peças únicas e da edição de múltiplos ou séries.
Aí expuseram tapeçarias de Portalegre António Sena, Charrua, Eduardo Nery, Maria Velez e também Sá Nogueira, Rogério Ribeiro e outros, estrangeiros também. Depois do mítico Hotel do Mar em Sesimbra (1957-66), o Hotel da Balaia afirmava uma escala inédita de intervenção do atelier e a extensão do projecto ao equipamento, ao mobiliário e à decoração – a exposição de peças destinadas ao hotel de Albufeira na SNBA em 1967, com destaque para a tapeçaria (5), tal como o concurso realizado pela Fundação Gulbenkian no mesmo ano para as obras a instalar na sua sede, premiando João Abel Manta, inserem-se nesse momento de grande notoriedade. Viriam a seguir o primeiro boom do mercado da pintura, a crise do petróleo e o 25 de Abril…
As décadas recentes são mais conhecidas, com a presença regular das produções de Portalegre na sua galeria própria e em numerosas exposições. Mas, numa muito breve escolha pessoal ainda importa destacar a originalidade conceptual das tapeçarias criadas por Menez (por exemplo, as três Janelas, com primeiras execuções em 1990) e por Lourdes Castro (As Quatro Estações, desde 1992). Ou a tapeçaria de Eduardo Batarda para o Tribunal Constitucional, de 1989, escolhida por concurso, e a de Fernando Lanhas para a Igreja de Santo Ovídio da diocese do Porto, de 2002. Entretanto, a produção recentíssima de trabalhos de artistas mais jovens como Rui Moreira e Rigo é um sinal muito positivo de continuidade e renovação.
Próxima e distinta da pintura, mais parede que quadro, com valores matéricos e tácteis únicos, a tapeçaria mantém presentes as qualidades funcionais próprias que a justificam: aquece o ambiente, absorve os ruídos, modela a luz, anima o olhar, enriquece o espaço. “…Cria conforto e encanto”.
NOTAS
-1 - Mário Dionísio, “Tapeçaria moderna”, artigo do suplemento “Cultura e Arte” de O Comércio do Porto recolhido em Estrada Larga, vol. II, Porto Editora, s.d., pp. 198-203.
- 2 - Júlio Pomar, “Decorativo, apenas?”, Arquitectura, nº 30, Abril-Maio de 1949, pp. 6-7.
- 3 - Os Estúdios Cor publicaram em 1962 uma tradução de José Saramago.
- 4 - Jean Lurçat, “Notes sur la conception de l’artiste et sur l’art mural”, Colóquio, nº 4, Julho de 1959, pp. 1-5).
- 5 - Ver na revista Colóquio, nº 47, Fevereiro de 1968, uma crítica de Francisco Bronze que faz eco de animosidades do tempo, pp. 35-38.
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