Todos os anos são importantes, mas uns mais do que outros. (Apontamentos)
A 15 de Julho de 1948 António Ferro discursa na inauguração do Museu de Arte Popular, na presença do presidente da República Óscar Carmona. O discurso é a síntese e justificação da sua intervenção nesta área (a arte popular e o folclore vistos como escolas do (bom) gosto e raiz possível da criação artística moderna/modernista), assumindo a posição de antigo vanguardista e de mentor da "Política do Espírito", já sob o ataque de outros sectores do regime (a demissão estava próxima).
O Museu estaria pronto a abrir já em 1947, como se vê na fotografia de Mário Novais da exposição "14 Anos de Política do Espírito": anunciava-se então na legenda como o "museu onde estão reunidas as criações mais pitorescas e mais características da ingénua actividade artística do nosso povo".
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O MAP, aliás, anunciara-se já em 1944 e estava a ser pensado desde 1942 no quadro da requalificação da Praça do Império após a Exp. do Mundo Português de 1940 - e a sua dinâmica vinha das primeiras recolhas folcloristas de 1937 levadas à Exposição Internacional das Artes e Técnicas da Vida Moderna de Paris e aí premiadas...(1)
Considerando a importância das pinturas murais do Museu e a responsabilidade de Tomás de Mello e Jorge Segurado, o pintor-decorador e o arquitecto, ambos designers avant la lettre, na condução do projecto museográfico, vale a pena atender à importância que tem então a "arte pública", a grande decoração, a ideia da integração das artes.
Em 1945 Almada terminava os frescos da Gare Marítima de Alcântara. E em 1949, os frescos da Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos (datados de 47-49). (Os segundos chegaram a estar em risco, pelo seu pós-cubismo e por uma representação do povo que já conhecia o neo-realismo - sobreviveram, o que não aconteceu a outros frescos.)
Em 1946 Júlio Pomar começara os frescos do cinema Batalha, no Porto, o qual se inaugura a 29 de Maio de 1947 com uma das pinturas não concluídas devido à prisão do artista (com toda a comissão central do MUD Juvenil). Completada nos últimos meses desse ano, a empresa do cinema é intimada já em 1948 a ocultar as pinturas - com data limite de 25 de Junho. (O MAP abriu a 15 de Julho, recorde-se.)
Também em 1948 realiza-se outra exposição marcante do regime: «15 Anos de Obras Públicas 1932-1947», por iniciativa do Ministério das Obras Públicas e ainda em homenagem à acção de Duarte Pacheco (1899 — 1943), com instalação no Instituto Superior Técnico.
No mesmo nº da revista Panorama (nº 35) em que se noticia e critica a inauguração do MAP (texto do historiador e etnólogo Luís Chaves, abertamente oposto aos seus critérios expositivos - o fascismo não era monocórdico...), as primeiras páginas dessa edição documentam extensamente a presença dos escultores portugueses nessa mostra (Barata Feyo, Francisco Franco, Canto da Maia, Alvaro de Brée, Leopoldo de Almeida e António Duarte) e ilustram a qualidade do design expositivo e da pintura mural (é referido no artigo só o nome de Jorge Barradas). O Arq. Jorge Segurado, outra vez ele, chefiou a equipa de "artistas decoradores" deste "instrutivo documentário e aprazível espectáculo" em que alinharam Roberto de Araújo, Fred Kradolfer, Frederico George, Carlos Botelho e outros.
Entretanto, o general Norton de Matos apresentou-se oficialmente às eleições para a Presidência da República em Julho de 1948. A campanha eleitoral começou a 3 de Janeiro de 1949, e as eleições realizaram-se em 13 de Fevereir
Em 1949 realiza-se a Exposição dos Artistas Premiados pelo SNI (1935-1948), SNI, em Maio (catálogo com textos de António Ferro e Diogo de Macedo) e a seguir o 1.º Salão de Artes Decorativas (1º e único, aliás), organizado pelo S.N.I. no Palácio Foz, aberto poucos dias depois da IV Exposição Geral de Artes Plásticas, na SNBA, onde se atribuira já (e não por acaso) uma especial atenção à área das artes decorativas, nomeadamente com a apresentação das primeiras tapeçarias executadas em Portalegre, as quais se dividem assim pelos dois salões. (Ver artigo Tapeçarias-de-portalegre )
A história da arte hoje dominante (e oficial, académica, politicamente conforme ou correcta, etc) presta mais atenção à aparição de umas movimentações surrealistas em 47/49, que já tinham aparecido nos finais dos anos 30, que passaram desde 39 pelos Salões do SNI (com António Pedro, António Dacosta e Cândido Costa Pinto), que tinham em Cândido a grande expressão pública/popular, que correspondiam localmente à reanimação parisiense após o regresso de Breton, que levaram à saída dos ditos surrealistas da II Geral (de 48) - e tb por isso a IV de 49 foi objecto de um notório reforço organizativo e de mais projecção na imprensa oposicionista. Mas convém ver em que medida se troca pela atenção às franjas o conhecimento do canal principal da história.
O MAP ia ser, a partir de 48, menosprezado pelo regime e desprezado pela oposição. A grande decoração (que então vinha na linha da "arte útil" dos anos 30, da vaga das grandes exposiçõees internacionais, das campanhas artísticas do New Deal) iria ter de esperar pelo boom da modernização arquitectónica das cidades de Lisboa e Porto e pelas primeiras apostas no turismo, nos finais de 50 e anos 60 (o Ritz, o Hotel do Mar de Conceição Silva), para voltar a ganhar visibilidade e interesse. A arte popular (à margem de um museu imobilizado) ia merecer a atenção concorrencial dos meios do regime e da oposição: o Inquérito à Arquitectura Popular publicado em 61, a Arte Popular da Verbo (Pires de Lima) a partir de 59; o Conde da Aurora e Pedro Homem de Melo de um lado, Lopes Graça e Giacometti do outro, e por aí fora...
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1937 é o ano do Congresso Internacional de Folclore, em Paris, em tempos da Frente Popular e então se afirma a influência de Georges Henri-Rivière, criador do Musée des Arts et Traditions Populaires, a partir do anterior Museu de Etnografia do Trocadero (o MATP: 1937-2005, encerrado num processo que tem alguns paralelos com o caso português). Ver sobre o livro de Nina Gorgus. Le Magicien des vitrines. Le muséologue Georges Henri-Rivière a "Resenha" por Heliana Angotti-Salgueiro em http://www.scielo.br / ou pdf. http://redalyc.uaemex.mx
"Também do espírito do tempo é a voga de revalorização da cultura local e regional, o que Anne-Marie Thiesse chama de "vulgarização folclórica", quando grupos de diferentes tendências políticas se servem do regionalismo para construir as identidades locais, usando-o ainda como uma estratégia para vencer a crise econômica e social que dominava a França: a "cultura popular", o patrimônio folclórico e sua entrada nos museus são as bandeiras do governo do Front Populaire, que durou de 1936 a 1938 (cf. p. 97 e ss). Mas nem o regionalismo nem o folclore acabaram sendo unanimemente vistos com bons olhos por todos, pois foram utilizados por diferentes tendências. A revisão oficial do conceito de folclore, por exemplo, foi retardada pela Segunda Guerra, predominando a consideração da cultura rural como guardiã da identidade nacional, o que valeu o apoio do regime de Vichy ao museu dos ATP - atente-se para o fato de que o regionalismo francês é uma questão complexa, pois ele nasce nos meios da esquerda e é depois utilizado pela direita, por Pétain. Enquanto os ATP, na ala oeste do Palais de Chaillot, passam de "vitrine do povo no tempo do Front Populaire a reduto das tradições sustentado pela Confédération paysanne sob Vichy", contribuindo para os estudos de identidade nacional a serviço da Ocupação, no Museu do Homem se formava o primeiro grupo da Resistência."
outra biblio.: SEGALEN, Martine. La vie d'un musée. 1937-2005. Paris: Stock, 2005.
"LA PETITE PATRIE ENCLOSE DANS LA GRANDE": regionalismo e identidade nacional na França durante a Terceira República (1870-1940)* Anne Marie Thiesse - http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/161.pdf a (arte e as tradições populares na Frente Popular e no governo de Vichy, e depois, entre direita e esquerda) (um texto de referência)
Folklore and Folklife, Por Richard Mercer Dorson
George Henri Rivière : un demi-siècle d'ethnologie de la France, par Isac Chiva: http://terrain.revues.org/index2887.html#inside
http://www.musee-europemediterranee.org/fr/Musee-Le-projet/Histoire-de-l-institution/Le-Musee-National-des-Arts-et-Traditions-populaires
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