(Arquivo EXPRESSO, 30 –07-2005)
Antes de Fantin-Latour, o Museu Thyssen tinha mostrado Corot. Vários elementos os ligam e tb às duas exposições, desde logo o mesmo comissário, que vem procedendo a releituras aprofundadas de artistas menos populares do séc. XIX. Ambos foram muito coleccionados por Gulbenkian (sete Corot; quatro Fantin), ambos tiveram em vida entrada admirada no Salon, apesar da carreira singular e não académica, e ambos tiveram um grande (ou maior) mercado fora de França (Corot na América, Fantin em Inglaterra). Ambos fazem vacilar as classificações que em geral se vêem ou valorizam mais do que as obras, e são por isso ditos inclassificáveis. Ambos não se vinculam ao lançamento de movimentos e inovações, ambos atravessam com originalidade pessoal diferentes "conjunturas" e caracterizações estilísticas. Ambos são extraordinários pintores.
Sobre Fantin-latour em Lisboa: ver texto informativo do Público (sem indic. de autor) no site do CNC: http://www.e-cultura.pt/DestaqueCulturalDisplay.aspx?ID=1232
"Corot por inteiro"
Em Madrid, uma obra do século XIX sob novas abordagens
Não é um nome que arraste multidões ou se identifique com a definição de um estilo ou com uma ruptura histórica. Às vezes chamou-se-lhe um precursor dos impressionistas, e alguns deles declararam-se de facto seus discípulos, mas é uma classificação pouco acertada, que condiciona a visão da obra, ou apenas de uma das suas direcções, à interpretação de evoluções futuras. A pintura de Camille Corot (1796-1875), aliás, foi sendo apreciada pelos contemporâneos e depois pela história da arte por diferentes ou mesmo opostas razões, valorizando ou esquecendo importantes aspectos da sua longa e diversificada carreira. A controvérsia está longe de se encerrar, e as reapreciações dos últimos anos trouxeram novos elementos ao debate. Rever a obra dum grande artista histórico não é repisar o que já se sabe. Os aspectos considerados mais inovadores das suas primeiras vistas «do natural», a espontaneidade exacta das formas e a firmeza da utilização construtiva da luz, relacionaram-se com os estudos que praticavam há muito os pintores neoclássicos de Roma, na linha das «pochades» de Pierre de Valenciennes (1750-1819); as composições poéticas e artificiais do período tardio, que fizeram o êxito comercial de Corot e a crítica modernista preferiu ignorar, são consideradas por alguns como o expoente mais radical da sua obra.
Em Madrid, o Museu Thyssen-Bornemisza dedica-lhe este Verão (até 11 de Setembro) uma grande mostra retrospectiva que tem por objectivo, precisamente, dar a conhecer todos os matizes da obra de Corot, sem privilegiar qualquer deles - embora os textos do catálogo procurem revalorizar o que ao longo do século XX se (des)considerou como trabalho oficial, destinado ao Salon, e aquela produção vista como compromisso mercantil dos últimos anos de vida. Através de 81 quadros vindos de todo o mundo (em especial dos Estados Unidos, onde foi muito coleccionado, mas também do Museu Gulbenkian, que emprestou uma das sete pinturas da colecção, A Ponte de Mantes, de cerca de 1865-70), a obra de Corot é revista na sequência directa da retrospectiva que em 1996-97, no segundo centenário do nascimento, se apresentou no Grand Palais de Paris, e também em Otava e Nova Iorque, já da responsabilidade do mesmo comissário, Vincent Pomarède, conservador-chefe da pintura do Louvre.
O percurso estabelece-se, primeiro, através das abordagens realistas, quase topográficas, das vistas sobre as ruínas e campos de Itália e logo das paisagens de França, passando dos estudos de ar livre a óleo sobre papel, que não se destinavam à apresentação pública, às telas de estúdio, onde transitava, sem rupturas essenciais, da observação directa à composição formal. Foi essa fidelidade naturalista e «ingénua» face ao visto (sem referência a modelos históricos), com a qual se encontrou com os pintores de Fontainebleau, que a história valorizou como estilo pessoal e como etapa de transição para a modernidade. Depois, passa-se à pintura da natureza transformada pelas regras da paisagem histórica e mítica, com a introdução literária de personagens à maneira de Poussin, que correspondeu ao reconhecimento de Corot no Salon. No final, à transposição lírica e idealizada da natureza, envolta em névoa prateada, a que o pintor chamou «Souvenirs», onde sublinha «a aura emotiva que acompanha a experiência pessoal da paisagem» (Tomàs Llorens), com imensa fama nos tempos do Segundo Império.
Aquela visão mais estritamente naturalista, não é, no entanto, marca exclusiva dos primeiros tempos; pelo contrário, persiste ao longo de toda a obra em trabalhos paralelos nascidos da acuidade da observação directa, que nos anos 1870 se concluem com sólidas vistas urbanas e interiores de igrejas. Entretanto, a par da paisagem, a retrospectiva destaca a importância da prática menos frequente do retrato, do nu e da figura, e em especial a «figura de fantasia», com mulheres absortas nos seus pensamentos, interrompendo a leitura, que viriam a ser muito apreciadas por Picasso, Braque e Gris, ao tempo do primeiro cubismo e do chamado «regresso à ordem».
Jean-Baptiste Camille Corot nasceu em Paris, numa família abastada, e foi destinado ao negócio de tecidos e da moda. Só aos 26 anos, e por um funesto acidente, a morte duma irmã, os pais cederam à vocação artística, aceitando usar as verbas do dote daquela para lhe concederem uma renda anual. Essa forma de mecenato, que o manteve numa longa dependência familiar, permitiu-lhe viajar para Roma sem passar pelos concursos académicos (a que não tinha acesso por falta de formação escolar regular) e pintar sem necessidade de vender. Mantendo-se solteiro, trabalhou toda a vida «como um possesso», em palavras suas, e foi um viajante incansável por toda a França (regressou duas vezes a Itália e visitou outros países) em busca de temas de estudo sempre diferentes, bem acolhido em casa de parentes, colegas e admiradores, graças a uma proverbial bonomia. Sem escândalos nem pronunciamentos teóricos radicais, desinteressado da política, a vida e a obra de Corot não podiam estar mais distantes da imagem do artista maldito. O reconhecimento oficial chegou pouco antes dos 50 anos, com as paisagens «heróicas», mas conservou a independência dum franco-atirador e nunca teve a consagração máxima da medalha de primeira classe do Salon. A procura das paisagens bucólicas pelos coleccionadores tornou-se sempre mais insistente numa velhice plena de vitalidade e fê-lo aumentar a produção, abrindo ateliês de discípulos e assistentes que facilitaram depois o comércio de falsos (em 1936, escreveu-se que «Corot é autor de 3000 quadros, dos quais 10.000 se venderam na América»).
Se a extensão e diversidade da obra fazem de Corot um artista maior e mais inclassificável do que foi sendo sugerido pelas sínteses da história da arte, obrigando a conjugar referências ao neoclassicismo, ao romantismo e ao realismo, e a reconhecer a forma pessoal como os transcendeu, a mostra também contribui positivamente para se reconstituir com mais complexidade o curso do século XIX. Como a carreira de Corot passa desde 1827 pelo Salon, com prémios a partir de 1840, as fronteiras entre inovação e arte oficial têm de ser vistas como menos estanques, o que também já se reconheceu com a revalorização de Puvis de Chavannes (1824-1898) e da influência das suas decorações arcaizantes sobre os modernos.
Em oposição à recepção crítica do século XX, V. Pomarède considera que o «Souvenir» é a «quinta-essência da arte de Corot e a apoteose do seu estilo pictórico», adiantando que ele foi «talvez mais o pai dos inventores da abstracção que o dos racionais impressionistas», uma vez que aquele estilo tardio «prefigura de facto o devir de uma pintura que dará mais importância às emoções e ao imaginário que à forma, ao sentimento que à imitação». A tese que associa as «paisagens mentais» da última fase, melancólicas visões da Arcádia, à poesia tardo-romântica e ao gosto de Corot pela música e a dança põe em sequência o seu dito «o que sentimos é real» com outros de Cézanne («Não pinto os objectos, mas as sensações que me dão») e Monet («Pinto as minhas impressões»), para seguir até à prefiguração da abstracção por Kandinsky. É uma pista polémica.
Fotos: «Paisagem de Morvan ao Amanhecer», cerca de 1840-45
«A Loura da Gasconha», 1850 - do retrato à «figura de fantasia»
«Recordação de Mortefontaine» (Salon de 1864)
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