A inicitiva com que o "I" assinalou o Dia Mundial da Fotografia foi uma excelente oportunidade para fazer publicar uma foto de Maria Lamas, fotógrafa desconhecida ainda, 60 anos depois de ter publicado "As Mulheres do Meu País" (1948-50). Menos desconhecida desde 2008, e agora apresentada por Jorge Calado na exposição "Au Féminin", no Centro Cultural da Fundação Gulbenkian em Paris (até 29 de Setembro, sem itinerância). E é mesmo Maria Lamas a autora mais representada, com oito imagens e um livro, nesse inédito panorama da fotografia feita por mulheres sobre mulheres, em todo o mundo e desde o início da fotografia até hoje. Jorge Calado apresenta-a no catálogo com uma frase decisiva - "Em Portugal, o equivalente fotográfico da FSA (Farm Security Administration) é obra de uma única mulher: Maria Lamas".
(No I, a reprodução saiu demasiado densa, apesar ou por causa dos 300 dpi e dos 3,5M)
Uma das mais insólitas curiosidades da fotografia portuguesa é o facto da obra fotográfica de Maria Lamas - mesmo que reduzida a um único grande livro editado em 15 fascículos ao longo de menos de dois anos, e nunca exposta no seu tempo - ter permanecido ignorada tantas décadas. É certo que não se tratava de um álbum de ilustrações mas de um longa reportagem, ou inquérito jornalístico muito ilustrado; que as condições editoriais da reprodução fotográfica não eram as melhores da época; que além das muito numerosas imagens da autoria de Maria Lamas ela própria escolheu e fez publicar outras tantas (?) de fotógrafos que eram famosos ou desconhecidos por meados do século XX (esse é outro dos motivos de interesse do livro); que o activismo e o protagonismo político da autora (o exílio e os condicionalismos partidários) se sobrepuseram à apreciação da sua obra de escritora e de ocasional fotógrafa.
Ignorada na história de António Sena (1998), que permanece a única obra de referência, a produção fotográfica de Maria Lamas não costuma ser representada ou mesmo referida nas mostras monográficas que lhe foram dedicadas (Biblioteca Nacional 1993, em especial). Só com a muito cuidada reedição em fac-símile realizada pela ed. Caminho em 2002 (com reprodução das imagens a partir das provas originais, sempre que possível - graças à coordenação gráfica de José António Flores) é que o trabalho fotográfico de Maria Lamas começa a ganhar a atenção que merece. No ano seguinte, Maria Antónia Fiadeiro, numa biografia publicada pela Quetzal, aponta Maria Lamas como uma repórter fotográfica pioneira.
Maria Lamas, Jovem mãe da Castanheira, Serra da Estrela ("As Mulheres do Meu País", pág. 161, 1948-50. "Au Féminin", nº 8 - prova vintage, 8 x 5 cm) © Herdeiros de Maria Lamas, Lisboa / Editorial Caminho
Quando Maria Lamas concebe e produz o livro "As Mulheres do Meu País", criando uma estrutura editorial artesanal e familiar para o efeito, tinha já 53-54 anos. A relação com a fotografia seria apenas a de uma jornalista do quadro de O Século (entrou em 1929) com uma longa experiência de direcção de suplementos e revistas, e em especial do semanário feminino "Modas e Bordados", entre 1930 e 1947. Nem fotógrafa profissional, nem "amadora" (no sentido habitual de aficionado ou praticante da arte fotográfica), Maria Lamas apenas por necessidade recorreu por algum tempo a um "caixote Kodak" para fazer as imagens que deveriam acompanhar o seu inquérito sobre a vida e o trabalho das mulheres portuguesas.
Queria-as "verdadeiras, expressivas, com valor documental e inéditas", conforme diz numa entrevista a O Primeiro de Janeiro (28 de Abril de 1948). "Resolvi arranjar uma máquina e ser eu, também, fotógrafa" - "Ler - Informação Bibliográfica", Publicações Europa-América (Maio-Junho 1948). Um genro que trabalhava para a Kodak ensinou-lhe os rudimentos da fotografia e tratou do material trazido das deslocações pelo país. O espólio conservado pela família compreende os negativos e as provas positivas de que se escolheram as imagens reproduzidas no livro, em contactos e provas de pequeno formato que nunca houve a intenção de expor. Por vezes, revela Jorge Calado, as provas foram reenquadradas para eliminar figuras masculinas ou sujeitas a colagens para os grupos serem apenas femininos.
São circunstâncias que fornecem alguns ensinamentos sobre a realidade ambígua da fotografia e sobre os seus circuitos de reconhecimento e consagração. Por um lado, uma grande aventura fotográfica, que é também um grande obra (única no contexto português do seu tempo), pode surgir no exterior das práticas institucionalmente estabelecidas, à margem da profissão e das suas aptidões funcionais (o fojornalismo, o retrato, a ilustração documental, reconhecidas ou não como produção artística) e também à margem da intencionalidade artística oposta aos usos funcionais, ou autónoma, que tinha à data os seus códigos associativos e rituais expositivos, identificados como amadores (mas não exclusivos destes, e os dois circuitos não são nunca estanques). Prática isolada e exercício breve no tempo (3 anos), sem aprendizagem, de intenção documental e alheia, pelo que se pode saber, à ambição da arte e dos seus circuitos, certamente sem modelos históricos ou conceptuais, a obra fotográfica de Maria Lamas é fundada num projecto próprio de inquérito e de comunicação, e também numa vontade de activismo cívico.
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