É quase uma boa entrevista a que o Diário de Notícias publica hoje (13, domingo/ regravado com data de 24) com Francisco Louçã. Refiro-me à pertinência do questionário, não à agilidade das respostas. Seria preciso ir mais longe e mais atrás.
O fim das ideologias começou por ser um tema de direita (Daniel Bell, 1959, reanimado mais tarde por Fukuyama e outros), hoje é um alibi da esquerda, aliás, um alibi da extrema-esquerda e uma dificuldade incómoda para a esquerda socialista.
Nunca me interessou a temática dos fins: da arte, da história, do homem, do corpo (!), da fotografia, etc - foram modas intelectuais para conversas de salões universitários. O fim das ideologias é hoje outra coisa, mais séria, mais preocupante, porque tem por origem, bem concreta, mudanças essenciais naquilo que dava substância anímica e força material à oposição entre ideologias - é um fim de conveniência e engodo, que resulta directamente da desaparição das rectaguardas onde as ideologias se solidificaram como regimes políticos (e policiais). Tornou-se uma arma na mão daqueles que por um tempo recusaram o fim das ideologias, até perceberam como podiam ser os beneficiários da amnésia. Os regimes (míticos ou infamantes) caíram, mas os seus agentes sobreviveram. Houve uns que viraram a casaca, a outros é agora possível esconderam a farda.
Desapareceram os estados que serviam de referente e de base ou sede às ideologias ditas revolucionárias: a URSS e a China, o Vietname outros lugares tricontinentais que herdavam transitoriamente bandeiras anticoloniais e anti-imperialistas. Cuba (sem o sustento soviético) agoniza solitariamente, a Coreia do Norte e o regime de Chavez não são exemplos decentes - Lula que foi fazendo o que podia, parece ser um exemplo decente que convém esconder (será um "traidor" social-democrata para os novos "verdadeiros" socialistas sem ideologia?).
Já foi sendo feita parte da história das consequências políticas internacionais das estratégias partidárias vinculadas à defesa do 1º estado dito socialista colocada acima dos interesses das classes operárias e dos partidos democráticos dos países industrializados - a história foi trágica e o caso português (o duplo regime, Salazar e Cunhal) é um dos subcapítulos marginais dessa tragédia, vivida mais tempo e até mais tarde.
Agora, o que importa é ver como o fim das ideologias permitiu reciclar os ideólogos da extrema esquerda em hábeis manipuladores de protestos e de ilusões, que se libertaram do fardo dos antigos "ismos" sem deles terem feito a crítica. Encerrado o que era o agenciamento de rectaguardas estratégicas - eu represento a URSS, tu segues o modelo chinês, aquele tem uns contactos na Albânia, o outro continua numa das versões da IV Internacional a lição burocrática anti-estalinista do trotskismo - , porque as sedes faliram ou mudaram de agenda e não por efeito de revisões teóricas (nunca realizadas), os mesmos personagens aparecem livres da história anterior, limpos das associações (mais ou menos sangrentas) que antes personificavam, e oferecem-se virgens do seu passado e despidos de ideologias políticas, profetas de um futuro radioso e afinal fácil.
Coleccionam protestos e insatisfações, legítimos ou não; somam interesses sectoriais e corporativos; agitam queixas e casos (não causas), manipulando escândalos reais ou forjados como faz qualquer pasquim; acenam com soluções imediatas e promessas como qualquer demagogo, porque nenhum princípio de realidade têm de respeitar a montante ou a juzante do verbo fácil dos pregadores. Federam a esquerda caviar e a esquerda festiva (sem "ismos" é mais fácil), as velhas militâncias desamparadas, os iludidos e os desiludidos de todas as revoluções (em especial das "promessas de Abril") a quem asseguram a sobrevivência dos velhos lugares de convívio, e agitam todas as bandeiras possíveis de protesto e de esperança - mesmo se se protesta para tentar conservar o passado que já mudou ou vai ter de mudar.
Conviria fazer o processo do desabamento dos regimes ditos socialistas ou comunistas, da guerra fria, do Muro de Berlim e das expectativas investidas nas independências pós-coloniais. O mundo mudou. Nem uma palavra.
Conviria equacionar as vitórias sucessivas da direita em países que possuíram a Ocidente as esquerdas mais sólidas e por vezes mais reflectidas (a França e em especial a Itália, onde teve fortes raízes uma extrema-esquerda livre das dependências a Oriente). A esquerda mudou. Nem uma palavra sobre tudo isso.
Seria preciso analisar os efeitos sobre as economias antes industrializadas das distantes mudanças da globalização, e do acesso de massas de camponeses e sub-proletários orientais a novas e ainda imprevisíveis condições de desenvolvimento social, reequilibrando (talvez) o terrível desiquíbrio mundial que sustentava as "conquistas" do antigo proletariado ocidental e do estado do "bem estar" do pós-guerra hoje obviamente postas em risco. Nem uma palavra sobre um mundo que atravessa as alterações mais extensas depois das "descobertas" coloniais.
Importaria pensar a reorganização do trabalho tornada necessária pelas novas tecnologias (a automação) e a informática, alterando as estruturas e rotinas sociais herdadas ainda da revolução industrial. Teria de reflectir-se sobre a ausência de respostas anticapitalistas minimamente credíveis à crise actual e sobre a convergência nas receitas que há 80-60 anos (depois da crise de 1929 que a 2ª Guerra resolveu) tornaram viável a reconstrução e a modernização do sistema (não se tratou apenas de uns furtos feitos por banqueiros e corretores imaginativos). Haveria que falar no esgotamento dos recursos naturais e na mudança dos paradigmas de desenvolvimento. Nada disso interessa discutir, pelo contrário, porque se trata só de acolher e amplificar queixas e de prometer a todos a conservação de privilégios e modos de vida condenados (ah!, as pequenas e médias empresas inviáveis, as fábricas obsoletas, etc...). A fraude política (e o eleitoralismo - quem dá mais, quem tem mais cadeiras) nunca foi tão fácil e tão despudorada e delirante a retórica dos pregadores de serviço.
Usando o fim das ideologias não como tema de debate de princípios e objectivos, mas como táctica de encobrimento de origens, passados, estratégias e figurinos teóricos, como oportunidade de escamotear a irracionalidade de muitos protestos e o absurdo das promessas que não assentem num reexame global das novas condições políticas hoje existentes, o Bloco de Esquerda assume um discurso irresponsável. Caricatural e irresponsável.
Quem tem alguma memória sabe que o Bloco é uma sociedade por quotas onde se associam o trotskismo de Francisco Louçã e da antiga LCI, Liga Comunista Internacionalista, depois PSR, Partido Socialista Revolucionário (e agora o quê?), os marxismos-leninismos-maoismos que a UDP, União Democrática Popular (ao tempo das "democracias populares") federava e o PCR, Partido Comunista Reconstruído, dirigia mais ou menos na sombra (o Fazenda continua a representar a tendência) com uma amálgama mais ou menos informal de ex-PCs, ex-católicos de esquerda, ex-transfugas de diferentes formações e outros que nunca passaram ou já não passaram por aquelas formações históricas e têm bastante mais graça - Miguel Portas vai sendo a face pública desse terceiro eixo, menos sectário e mais fluente nos compromissos tácticos. Para um partido de linha anti-europeista, encoberta pela mesma recusa de clarificar os princípios ideológicos, o Miguel é o simpático deputado europeu que convém.
As mutações significativas nos jogos de força da esquerda europeia (para lá dos Pirinéus e onde ainda existe esquerda) têm-se feito em torno dos partidos verdes e dos temas da ecologia, das energias e dos modelos de desenvolvimento, que implicam o corte com as antigas concepções sectárias da extrema-esquerda leninista ou obreirista, e a respectiva crítica. Não são as novas questões sobre as mudanças do mundo de hoje (que não passam pela recusa ingénua da globalização) as que agitam os dirigentes do Bloco de Esquerda. Não é a questão do exercício do poder que lhes importa, porque o Bloco sabe que a partilha de responsabilidades impõe um termo (pelo menos uma gestão muito mais cautelosa) da cultura da irresponsabilidade política: ele precisa de ser do contra para poder federar os descontentes (o PCF experimentou graças a Le Pen o peso das responsabilidades sobre o seu eleitorado tradicional). São questões de mera contabilidade eleitoral - mais alguns deputados a ganhar ao Partido Socialista para o impedir de vencer e de governar -, mesmo que nessa aposta façam o jogo da direita. O discurso é caricatural, leviano e perigoso.
Nota: Julgo que se percebe que considero o aparente "fim das ideologias" um exercício de malabarismo político, simétrico ao anterior primado da ideologia na antiga propaganda da extrema-esquerda. Marx-Lenin/Trotsky ou Mao discutem-se agora nas cátedras (é uma especialização curricular) e já se lêem às massas. Mas trata-se sempre escamotear a escolha do inimigo principal (a social-democracia, como ao tempo da ascensão de Hitler, para usar uma comparação gravosa) por razões de curto prazo.
Comments