No terceiro ano de vida da Fundação de São Carlos, já é possível condenar a ineficácia da fórmula jurídica adoptada para a gestão da ópera. Apesar da geral falta de transparência das contas da SEC A FUNDAÇÃO de São Carlos é contemplada com 1 milhão e 115 mil contos no orçamento de funcionamento da Secretaria de Estado da Cultura para 1995, segundo os elementos comunicados à Comissão de Educação e Cultura da Assembleia da República. Aí se refere que tal verba é superior em 350 mil contos aos valores de 1994, o que corresponde a uma variação de 45,8 por cento.
No entanto, segundo a directora de Marketing da mesma Fundação (ver secção «Cartas», primeiro caderno), a dotação da SEC é apenas de um milhão de contos — e exactamente a mesma de 1993 e 1994!
A contradição é flagrante e reflecte a pouca correcção das informações prestadas pela SEC ao Parlamento, bem como a escassa transparência das contas públicas no domínio da Cultura.
Entretanto, confrontados com os equívocos dos números, tanto Manuel Frexes, actual subsecretário de Estado, como aquela responsável da Fundação de São Carlos acederam a prestar esclarecimentos adicionais que permitem, em linhas gerais, aprofundar a contabilidade da ópera e da música em geral. A verba indicada no orçamento da SEC (1.115 mil contos) corresponde à soma de 700 mil contos atribuidos expressamente à Fundação de São Carlos com 330 mil contos destinados à Orquestra Clássica do Porto e ainda 85 mil contos a aplicar em subsídios a outras actividades musicais (festivais, etc). Estes últimos 415 mil contos canalizados para a Fundação são, segundo Manuel Frexes, geridos em conjunto com a Direcção-Geral dos Espectáculos (DGESP), uma vez que o São Carlos «não está ainda preparado» para se responsabilizar pela condução prática das intervenções do Estado no sector da música. Virá algum dia a estar? O subsecretário reconhece, amavelmente, que, de facto, a Fundação «deve ter outro tipo de preocupações», as da ópera e da sua orquestra. Recorde-se, neste ponto, que a lei em vigor (nº 6/94, que extinguiu a anterior Direcção-Geral dos Espectáculos e das Artes) atribuiu à Fundação de São Carlos a responsabilidade da «execução das políticas do Governo de incentivo à música», o que, em princípio, associaria o Dr. Machado Macedo também às acções de apoio ao jazz e às bandas filarmónicas. Um protocolo posterior, firmado entre a SEC e a Fundação, veio regular com mais precisão as competências dos gestores do TNSC, nomeadamente desligando-os do processo de constituição das orquestras regionais. Mas as questões de fundo, respeitantes à legalidade da criação de uma Fundação sem fundos próprios (contrariando a letra do próprio Código Civil Português, como notou Luis dos Santos Ferro, in «Vértice» nº 54, Maio-Junho 1993) e à legitimidade da atribuição da «execução das políticas do Governo» a uma instituição de direito privado, permaneceram intactas. Voltemos aos números. Àqueles 700 mil contos que a Fundação retém para o seu próprio funcionamento — os quais correspondem à obrigação estatutariamente assumida pelo Estado no decreto-lei nº 75/93, que a criou — somam-se, na verdade, mais 300 mil contos atribuidos pela via do Fundo de Fomento Cultural (FFC), chegando-se assim ao milhão de contos que é reconhecido pela directora de Marketing.
Mas não basta um milhão para haver ópera em São Carlos. A essa verba acrescem as participações das empresas públicas associadas da Fundação, a RDP (agora 350 mil contos; antes 300 mil) e a RTP (50 mil contos), de facto asseguradas igualmente pelo Estado, por via do orçamento do ministro-adjunto do primeiro ministro. E ainda as contribuições das empresas mecenas também sócias da Fundação: apenas 50 mil contos, divididos equitativamente pelos TLP (agora Telecom, em processo de privatização) e pelo BCP. Uma terceira empresa que se vinculara à Fundação, a Somec, desligou-se este ano do compromisso que assumiu em 1993.
O total das várias participações reunidas ao milhão de contos acima referido é, portanto, de 450 mil contos. Mas tornam-se evidentes algumas conclusões: a ópera está subfinanciada no orçamento da SEC, em relação aos custos reais regularmente assumidos pelo Estado, e, por outro lado, a canalização de verbas do FFC para a gestão ordinária do TNSC é um desvio às respectivas atribuições legais. Enfim, deve sublinhar-se que «a colaboração da sociedade civil», mirificamente apontada como o sustentáculo de uma Fundação que permitiria diminuir os investimentos públicos no S. Carlos, resume-se, afinal, a uns magros 50 mil contos anuais. Ou seja, 2,9 por cento! Mas a realidade é ainda mais complexa. Sobre um montante global de 1 milhão e 450 mil contos, o subsecretário de Estado Manuel Frexes referiu, ainda, a ocorrência de alguns outros suplementos financeiros eventuais vindos do Fundo de Fomento Cultural (à volta de cem mil contos) e de um défice considerado normal de cerca de 200 mil — no total, estamos já numa verba que oscila entre 1.650 e 1.750 mil contos. Sem considerar outras dotações que em 1993 foram justificadas pelas comemorações do bicentenário de São Carlos e em 1994 pela capital cultural...
Aquele total já é, praticamente, a verba referida por Machado Macedo como necessária à manutenção da ópera de Lisboa: «O que se vai fazer no São Carlos custa no mínimo, mas no mínimo, 1.800 mil contos» (in entrevista ao «Público», 25/02/93, «O dinheiro ainda não chega»).
E é também uma verba muito próxima dos valores máximos atingidos entre 1990 e 1992 pelos custos do Teatro Nacional de São Carlos E.P. (então ainda empresa pública): dois milhões de contos anuais. Mas, chegados a este ponto, é preciso considerar algumas diferenças significativas entre as responsabilidades assumidas pelas duas estruturas jurídicas que se sucederam.
Aquele orçamento anterior incluia a Companhia Nacional de Bailado, agora autonomizada e confiada a um insólito Instituto Português do Bailado e da Dança (de direito privado!), a que o orçamento da SEC atribui 50 mil contos (sem variação desde 1994) e o FFC mais 350 mil contos.
Por outro lado, o antigo São Carlos contava com uma companhia de cantores residentes, entretanto destroçada, e, graças ao modelo de contratação dos músicos da Orquestra Sinfónica Portuguesa, a Fundação ter-se-á visto «livre» do cumprimento de encargos de segurança social que correspondem a 27 por cento da massa salarial. Por último, as receitas de bilheteira são agora adstritas à Fundação, quando antes eram consideradas receitas do Estado. Será, no final de contas, a correlação entre os valores actuais e os «custos» anteriores desfavorável ao modelo de gestão em vigor até 1992? A Fundação confirma-se como a fórmula milagrosa para libertar o Estado dos custos (afinal inevitáveis) de um teatro de ópera nacional? Mais ainda — se aceitássemos reeditar o aberrante modelo de raciocínio do ex-ministro Jorge Braga de Macedo, que apontava como «prejuízo acumulado» do São Carlos EP os 12 milhões de contos resultantes da soma dos subsídios e dotações de capital, entre 1980 e 1991, para assim condenar a sua «total dependência do apoio financeiro do Estado» e, logo, a natureza jurídica da empresa pública —, os «prejuízos» tornados necessários pela fórmula Fundação não rondarão já os seis milhões de contos em apenas três anos? Algumas incógnitas persistem ainda. Segundo esclarecimentos complementares obtidos, o custo de funcionamento da Orquestra Sinfónica Portuguesa, que entretanto realiza uma paralela temporada de concertos no CCB, corresponde a 660-670 mil contos anos, embora Álvaro Cassuto, noutra oportunidade, já tenha referido 710 mil contos. Quanto à temporada do São Carlos para 1995, Paulo Ferreira de Castro já referiu, para justificar a pobreza do programa anunciado, a existência de um limite orçamental para a produção de espectáculos no valor de 250 mil contos. Essa verba exígua é, no entanto, difícil de compreender no quadro do orçamento global da Fundação e, por outro lado, parece ser excessiva para o programa anunciado, a menos que se preparem para o final do ano acontecimentos de maior envergadura.
Para completar a leitura do estado geral dos orçamentos canalizados para a música, falta indicar o montante destinado às orquestras regionais (OR), que é de 200 mil contos em 1995, igualmente retirados do FFC. Ao cabo de três anos de aplicação do projecto de descentralização musical, a situação revela-se instável no caso da iniciativa alentejana, aprovada em 1993, por falta de participação das autarquias envolvidas; no caso mais recente da região Centro, os desentendimentos entre Aveiro e Coimbra têm retardado o respectivo arranque; e apenas a formação do Norte parece estar viabilizada.
Neste quadro, será possível a Manuel Frexes, sem aumento das verbas fixadas, continuar a apoiar a primeira OR do Norte, depois dos seus dois primeiros anos de existência. Aliás, o subsecretário de Estado defende agora que será mais realista manter a continuidade dos apoios do Estado, não apenas nos dois anos iniciais, conforme previsto, mas «durante cinco a dez anos, até à consolidação dos projectos». É uma opção justa. Ainda não se esgotam aqui as contas da música no âmbito do orçamento do FFC. Nele se encontram consignados, na rubrica «Orquestras Sinfónicas», 267 mil contos relativos à extinta Régie Cooperativa Sinfonia (certamente para pagamento de antigas dívidas) e ainda 20 mil contos para «Outras», mais 20 mil contros na rubrica «Outros apoios». Será a esta última verba do FFC e a parte dos 85 mil destinados a subsídios diversos no orçamento de funcionamento da SEC que se reduzirão todos os programas restantes que deveriam caracterizar uma política de incentivo à criação musical contemporânea, à investigação musicológica, à formação de novos intérpretes, etc, e que em anos anteriores era o campo de actividade específica de um departamento existente na antiga Direcção-Geral de Acção Cultural. A escassez dos recursos é tão óbvia como a indefinição dos programas.
Apenas como exemplo adicional da ilegibilidade dos documentos referentes às despesas da SEC, vale a pena abordar ainda um outro quadro fornecido à Assembleia da República com o título «Orçamento por Domínios de Actuação em 1995».
Quanto à música, aí se refere a verba global de 636 mil contos em 1994 (menos que a contribuição estatutária para a Fundação de S. Carlos!!) e o montante de 1.177 mil para 1995 (mais qualquer coisa que os 1.115 mil entregues à mesma Fundação!). Assim se chega a uma surpreendente variação de 85,1 por cento a favor de 1995, sem que os investimentos tenham minimamente crescido. Um outro exemplo elucidativo da blindagem que oculta a necessária transparência das contas públicas é a alínea relativa a «Acções Comuns ou Polivantes» (?), onde se encontra indicada a verba de 4.658.438 contos para 1995, a segunda mais elevada de todo o quadro. Em primeiro lugar, no mesmo documento oficial, vem o montante de 11.869.352 contos relativo a «Património — Monumentos e Museus», apesar da separação entre os Institutos do Património e dos Museus (IPPAR e IPM) datar já de 1991...
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