Antes e à volta do Museu de Arte Popular (1940-1997): a Galeria de Arte Moderna, os Mercados da Primavera e do Povo
1 - Foto de Paulo Guedes, 1940, Arquivo Fotográfico da CML. Alguns dos Pavilhões da Vida Popular da Exposição do Mundo Português. À esquerda o Pavilhão do Prólogo, com um átrio em semicírculo decorado por Paulo Ferreira, pelo qual se acedia à Sala de Síntese (secção de informação com painéis alegóricos e um palco giratório). Ao centro a Torre de Filigrana ou Pavilhão da Ourivesaria, e mais à direita o Pavilhão do Mar e da Terra, com o seu farol, ainda sobrevivente. Ao fundo o Padrão dos Descobrimentos (na anterior versão em estafe). E alguns visitantes.
O Museu de Arte Popular, inaugurado em 1948, ocupou os pavilhões ocidentais da chamada Secção da Vida Popular, que com as Aldeias Portuguesas constituia o Centro Regional (ou Secção Etnográfica Metropolitana - a par das secções Histórica e Colonial) da Exposição do Mundo Português de 1940, com a qual se comemoraram dois centenários nacionais e se celebrou o regime de Salazar, durante os primeiros meses da 2ª Guerra Mundial. O projecto arquitectónico daqueles pavilhões era da autoria de António Maria Veloso Reis Camelo (1899-1985) e João Simões (1908-1993), enquanto a área das Aldeias, situada onde hoje é o CCB, foi desenhada por Jorge Segurado.
Aberto a 2 de Julho (1940, poucos dias após a rendição da França invadida pela Alemanha nazi e dos primeiros ataques britânicos à frota alemã...), na sequência de um calendário de inaugurações sectoriais metodicamente cumprido, o Centro Regional foi organizado directamente pelo Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) e estava na dependência pessoal de António Ferro, que tinha como delegado Francisco Lage e o também etnólogo Luís Chaves como um dos adjuntos – o projecto dava continuidade e ampliava a linha das realizações de índole etnográfica que o SPN promovia desde 1935 como um dos capítulos básicos da chamada "política do espírito".
O "Diário de Lisboa" (já a 1 de Julho) falava de um "museu pitoresco de costumes, tradições, ofícios e mesteres, num álbum assaz curioso de imagens e expressões artísticas, de sabor rural, em que se excederam os artistas da "équipe" das representações de Paris e New York". E continuava: "Lisboa inteira vai desfilar por esse teatro vivo e real das nossas províncias, encontrando ali motivos de lirismo, de folclore e de doce sentimento campestre. Esta parte do certame (...) é também uma afirmação de modernismo audacioso, embora dentro dos mais límpidos moldes da tradição artística portuguesa". Para o jornal "República" (2 de Julho) "a secção da Vida Popular é um admirável documento das actividades portuguesas e através dos seus seis pavilhões o visitante poderá verificar a importância industrial do país" (...) "uma verdadeira maravilha de graça e pitoresco, que a todos deixou as melhores impressões".
Pouco depois do encerramento da Exposição, começaram a ser adaptados para acolher o Museu - segundo projectos que se formularam logo desde 1941-42, no quadro do Plano de Obras da Praça do Império e da Zona Marginal de Belém, sob a tutela de Duarte Pacheco - os vários pavilhões edificados a nascente, associados em U pela porta monumental e o átrio interior coberto. Eles aparecem referidos em plantas e roteiros da época (embora haja diferenças entre os vários documentos) como os Pavilhões dos Transportes e Trajes, da Tecelagem, Olaria, e Doçaria, a Norte, e os Pavilhões das Artes e Indústrias, que davam passagem para a sala de cinema com painéis pintados por Estrela Faria, a Sul.
Três outras construções autónomas integravam a mesma Secção da Vida Popular e não foram destinadas ao MAP (ver foto 1): o Pavilhão do Prólogo ou Sala de Síntese, que tinha ao centro um palco giratório de figuras miniaturais, e por onde se dava início à visita, vindo o visitante das Aldeias Portuguesas e atravessando a linha férrea pela Ponte da Restauração; o Pavilhão do Mar e da Terra, a poente, vasto edifício a que se encontrava adossado o farol ainda hoje sobrevivente; e o Pavilhão da Ourivesaria ou Torre de Filigrana, desmontado logo após o evento.
Sobre a utilização posterior de toda essa vasta área fronteira ao Museu (agora ocupada por um alegado jardim japonês) há muitas zonas de sombra, que acompanham a também incerta história do MAP.
Por ocasião da Exposição Henriquina (Agosto/Novembro de 1960), e para instalar a "Exposição Cartográfica", em articulação com parte do Museu de Arte Popular, ter-se-á levantado uma construção provisória (?), na qual intervieram o arq. Frederico George e o decorador e designer Daciano Costa (nota 1). Em 1966 (11 de Novembro) foi inaugurada uma vasta galeria paralela ao MAP onde se exibiu a mostra "As Artes ao Serviço da Nação", comemorativa dos 40 anos da Revolução Nacional (Foto 2 - ver “Panorama”, nº 19 – IV Série, datado de Setembro 1966). Em 1967 (25 de Julho) aí se acolheu a II Exposição Nacional de Arte Moderna promovida pelo SNI e depois, em articulação com o Museu, a mostra Artes Manuais Alemãs (15 de Dez.). Em 1968 terá decorrido aí o 3º e último Salão do SNI e em 1969 fez-se uma exposição dedicada a Pedro Álvares Cabral.
2 - Estátua de Gomes da Costa, da autoria de Barata Feyo, à entrada da exposição "As Artes ao Serviço da Nação, para a qual se inaugurou a "galeria do Museu de Arte Popular", depois chamada Galeria Nacional de Arte Moderna. Era a Galeria de Arte Moderna de Belém quando foi vítima de um incêndio a 20 de Agosto de 1981 nas vésperas de inaugurar-se a bienal de desenho LIS'81 - o edifício terá sobrevivido até aos anos 90. Ver revista "Panorama", nº 19 - IV Série, Setembro 1966 (pág. 69, e mais 19 imagens da exposição. Fotos Santos de Almeida)
Esse edifício paralelo ao MAP integrava e prolongava o antigo Pavilhão do Mar e da Terra, que parece ter sempre sobrevivido como depósito do SNI (referido como Espaço Verde Gaio / Cortejo Histórico), e a galeria de exposições temporárias iria aparecer ora atribuída ao Museu ("galeria do Museu de Arte Popular", no referido “Panorama”, de 1966) ora designada como Galeria Nacional de Arte Moderna ou só Galeria de Belém. Duas plantas que ainda fazem parte da actual Ficha do MAP no inventário da ex-DGEM, com datas de 1980 e 1984, registam os dois edifícios - e a segunda junta-os sob a mesma designação: Museu de Arte Popular.
Ex-DGEM, "Museu de Arte Popular", Novembro de 1984. Planta do MAP (4) e do edifício anexo (5) onde se situavam à data a Galeria de Arte Moderna (que ardera em 1981); a Oficina de Belém e o Espaço Verde Gaio/Cortejo Histórico
Ex-DGEM, "Galeria Nacional de Arte Moderna", Levantamento, Planta de Cobertura, Fev. 1980 (antes do incêndio). À esquerda, o MAP
Faltam informações sobre as actividades posteriores nesta área (espaço envolvente do Museu) mas encontram-se no Arquivo da CML testemunhos fotográficos, desde pelo menos 1969, sobre o Mercado da Primavera, feira de artesanato de realização anual nos espaços à volta do Museu, fechados para o efeito (em 1969 estava já sob a tutela da SEIT de Marcelo Caetano): Ver Foto 4 e o magnífico cartaz de Sebastião Rodrigues para o Mercado de 1972 - http://museuartepopular.blogspot.com/2009/06/sebastiao-rodrigues.html . Aí se instalavam bares e restaurantes regionais e se faziam espectáculos de folclore - e também encontros de xadrez e os Salões de Artistas de Domingo (de 1970 a 74 – certamente no interior da Galeria de Belém). À volta do Museu continuavam a existir peças que deveriam fazer parte do seu programa (barco e espigueiro, pelo menos), bem como as antigas figuras populares esculpidas (vindas já de 1940) e ainda elementos decorativos pintados na fachada sul do antigo Pavilhão do Mar e da Terra, que foram desaparecendo depois de 1974 ou nas demolições posteriores (ver fotos do Arquivo Fotográfico da CML e Andreia Galvão, 2003, pp.395/6).
3 - O local fronteiro ou anexo ao Museu por ocasião da realização anual do Mercado da Primavera. Foto de Artur Inácio Bastos, 1969, Arquivo Fotográfico da CML.
A partir de 1975 o Mercado da Primavera dá lugar ao Mercado do Povo, a funcionar durante todo o ano, e com um papel convivial relevante no ambiente político dos primeiros anos do novo regime (por exemplo, a extinção do MES decorreu num jantar no Mercado do Povo em 1981). Uma notícia de Outubro de 1982, no DN, informa que o Mercado do Povo já à data tinha encerrado.
Na Galeria de Arte Moderna (onde a 10 de Junho de 1974 48 artistas pintaram um painel colectivo – ver filme de Manuel Costa e Silva: http://ssebastiao.wordpress.com/2009/06/30/arte-global/ ), realiza-se em 1977 a Alternativa Zero, dirigida por Ernesto de Sousa - a galeria aparece então associada ao Mercado do Povo e não ao Museu, demasiado ligado ao regime anterior e a atravessar uma das suas fases mais difíceis. A "Alternativa Zero, manifestação cultural da vanguarda portuguesa, surge em Belém, na Galeria de Arte Moderna, integrada no Mercado do Povo. Convém que disto se dê alvoraçada notícia" - escrevia Eduardo Prado Coelho, recente ex-director-geral da Acção Cultural, em 1975/76, e nessa condição impulsionador e patrocinador da mesma Alternativa Zero.
O incêndio da Galeria ocorreu a 20 de Agosto de 1981, mas as paredes do pavilhão subsistiram e vários governos foram anunciando a reabertura daquela, ou outros projectos para o lugar. Em Outubro de 1982, Gomes de Pinho, secretário de Estado do ministro da Cultura Lucas Pires, anuncia a instalação, dentro de apenas seis meses, de um Centro Nacional de Artesanato, durante uma reunião com o Conselho Interministerial para o Artesanato que teve lugar no Museu.
O Mercado do Povo terá sido desactivado em 1981-82 (entre o jantar do MES e o anúncio de Gomes de Pinho sobre o Centro de Artesanato). O edifício paralelo ao MAP terá talvez desaparecido em 1991, nas vésperas da 1ª presidência europeia de Portugal (1º semestre de 1992), quando se construía o Centro Cultural de Belém. Mas após a criação do Instituto Português de Museus (1992, com Simonetta Luz Afonso, voltaram a fazer-se projectos de reabilitação do edifício do Museu e também para a área anexa. As ideias então enunciadas, que retomavam alguns dos projectos anunciados em 1982 por Gomes de Pinho, incluiam um Centro de Formação Profissional em Artes Tradicionais (Arraiolos, ourivesaria, design, azulejaria), um atelier para artífices em regime de cedências temporárias, um anfiteatro ao ar livre e uma loja-livraria. O dossier documental do Ippar/Igespar sobre o MAP inclui pareceres e outros registos desses projectos, com datas de 1990 e 1991.
Uma sala de exposições temporárias veio de facto a inaugurar-se em 1995, adaptando uma sala de direcção do próprio Museu, e o MAP voltou a ser legalmente refundado em 1997.
notas
1 - Lê-se em Andreia Galvão, 2003, nota 229, p. 425: "Por ocasião das Comemorações Henriquinas os edifícios da zona poente foram transformados numa nave única. Esta intervenção do arquitecto Frederico George cortou definitivamente o eixo da circulação paralela ao rio que os anteriores corpos da Secção da Vida Popular propunham". De facto, o MAP já cortara esse eixo paralelo ao rio ao abrir a sua nova fachada a Norte e envidraçar as duas anteriores fachadas principais (Nascente e Poente). Mais do que de uma nave única tratava-se de um edifício único, continuando a existir um espaço de armazém e oficinas no antigo Pavilhão do Mar e da Terra. Mas fica a dúvida se esta construção de 1960 era já era o mesmo edifíco que se utiliza de 1966 em diante.
2. Em "Museus em pré campanha", EXPRESSO/Cartaz de 03-06-95 ( aqui ): "Por outro lado, num mesmo processo de apresentação <por Manuel Freches (subsecretário de Estado da Cultura)> de decisões relativas à area dos museus, o IPM cedeu à Associação Acordar História Adormecida os direitos de utilização dos espaços degradados da antiga Galeria de Arte Moderna de Belém e armazéns anexos, com vista à instalação de um Museu das Crianças. Na área adjacente, anuncia-se a reabilitação do Museu de Arte Popular, onde a 13 de Junho abrirá uma exposição integrada no centenário de Santo António. O seu futuro sentido museológico deverá vir a ser reequacionado, de modo a conservar ou a renovar uma visão sobre a arte popular que se reconhece como marcada por um contexto ideológico próprio do anterior regime político. Na prática, esse Museu voltou a desligar-se da direcção do Museu de Etnologia, estando por definir uma nova lei orgânica."
Muito bom. Agradeço. Ando às voltas para compreender a Alternativa Zero de Ernesto de Sousa e a sua ausência na PO.EX em 1980? Saberá a razão?
Posted by: Mário J. Gomes | 02/25/2019 at 17:39