ARQUIVO, EXPRESSO, Cartaz, Actual, Tribuna de 25-11-95
"Pagar a factura"
Os mais ingénuos terão entendido essa adesão como mais uma prova de uma larga convergência de vontades de mudança, que dentro de dois dias se confirmou nas urnas. Alguns espíritos precavidos associaram essa mobilização da orquestra, naturalmente «autorizada» por quem de direito, a certas movimentações gulbenkiânicas apostadas em travar a terrível hipótese de que fosse um crítico dos costumes da casa a ocupar o então futuro Ministério da Cultura. Não tinha sido José Sasportes o mais activo dos independentes a perfilar-se como porta-voz de Guterres no terreno da cultura, até se ter ausentado para Washington no final de 1994?
A imprudência, a inabilidade da veneranda administração voltam a ser chocantes.
O «Publico» de 11 de Novembro fez manchete com a «Crise na Fundação Gulbenkian» e revelou o desenterrar do velho projecto de transferir para o Estado a responsabilidade pela Orquestra, o Coro e o Ballet da Fundação, bem como pelo seu Instituto de Ciência. No último EXPRESSO, Ferrer Correia negava a crise financeira da instituição, moderava a proposta das transferências, mas reafirmava a candidatura da Gulbenkian a fazer financiar pelo Estado as suas actividades culturais directas.
Em segundo lugar, a Orquestra Gulbenkian e os demais corpos artísticos seriam sempre um presente envenenado para o Estado. Sem ter ainda consolidado as duas formações que dele dependem, a Sinfónica Portuguesa e a Clássica do Porto, sujeitando os seus músicos a infamantes relações de trabalho temporário e precário, o Governo ver-se-ía a braços com inadmissíveis desigualdades de salários e direitos. Por outro lado, no caso de se manterem as formações sob a tutela da Gulbenkian, que sentido teria que o Estado subsidiasse uma instituição que — reduzindo as actividades directas que fizeram da sua sede o mais importante centro cultural do país — pretende, afinal, ter por principal missão distribuir subsídios?
As condições em que o tema foi pela primeira vez agitado, há pouco mais de quatro anos e num muito diverso contexto pré-eleitoral, com a miragem de uma transferência dos corpos artísticos da Fundação para um CCB ainda em construção, rodearam-se de circunstâncias tão pungentes que teriam sido fatais a qualquer outra administração mais sensível ao ridículo — ver «Gulbenkian: outras músicas», EXPRESSO/«A Revista» de 28-10-1991.
Entretanto, é inquietante que, enquanto a Fundação se continua a revelar incapaz de, pelo menos, dar credibilidade ao projecto de reestruturação que prometeu há longos anos, seja pela amputação de algumas das suas tradições culturais mais relevantes que se pretende começar.
Mais do que reestruturação, é já a regeneração que se aguarda. E tanto para o Estado como para a Gulbenkian é vantajoso que tal processo decorra sem o «apoio» ou qualquer outra intervenção do Governo, na tradição da mútua independência que Azeredo Perdigão soube impor.
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