Pintura de História, Casa das Histórias
"As histórias destas pinturas refazem uma «pintura de história» que já não visa o sublime, o heróico ou o divino", dizia eu num escrito de 1996 ("Tabacaria, Revista de Poesia e Artes Plásticas", nº2, ed Casa Fernando Pessoa). Chamei-lhe "Pintura de histórias" para a referir à grande tradição da "pintura de história", que foi (ou é) o género maior.
A pintura de Paula Rego já não visa - ao contrário da antiga pintura de história oficializada pelo estado, a igreja e a academia - representar ou engrandecer poderes instituidos e autoritários. Pelo contrário: perturba, desafia, instabiliza as crenças e as ordens de ontem e de hoje. Não deixa de ser pintura de história por ser irrespeituosa, tal como, por exemplo, a de R.B. Kitaj o foi, referida não aos mitos de ontem mas à história e à cultura contemporânea.
Mas o imenso poder desta obra, o seu enorme impacto social e o incomensurável desafio que ela dirige hoje às convenções da chamada arte contemporânea (enquanto género institucional e académico dos nossos dias) têm a ver tanto com a eficácia dos seus temas contemporâneos como com essa relação de intimidade e concorrência entre o que é pintura de histórias e a grande tradição histórica da pintura de história.
Aliás, a relação desta pintura com o género maior, a pintura de história (que não é mesmo que a "Grand Manner"), é também desrespeitosa das hierarquias herdadas, e o seu itinerário criativo passa, de facto, pela reconsideração e revalorização da ideia (maldita) de ilustração, e pela pintura de género, em especial pela tradição inglesa de uma pintura narrativa de cunho social e moral, não moralista. Uma das minhas grandes experiências foi uma visita (rápida) à colecção da Tate Gallery, guiado por Paula Rego que apontava e comentava vários dos exemplos dos séculos XVIII-XX dessa tradição.
Casa das Histórias é um bom nome, em alternativa a Museu, e estabelece desde logo uma confrontação muito radical com alguns dos grandes interditos do que se julgava ser a "arte moderna", e não só na versão versão tardia do modernismo à Greenberg. Contra a condenação da narratividade, do literário, do ilustrativo, da figura, do tema, da intervenção crítica, da eficácia social - que orientaram muitas formações escolares do séc. XX -, Paula Rego põe a história (e a pintura de história) de pernas para o ar.
Pillowman Triptych (painel central), 2004, pastel on paper mounted on aluminium, 180 x 120 cm. Marlborough Gallery, Londres
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"(...) a fidelidade a um imaginário de infância foi, na obra da pintora — em
especial quando o regresso à pintura directa, depois da prática da
colagem, se associou à recuperação de uma figuração legível —, a via
privilegiada para a tradução projectiva de um universo temático em
grande parte centrado no seu próprio quotidiano. Memória ficcionada e
transposição dos conflitos do presente, onde realidade e imaginação
mutuamente se actualizam, e encobrem, o desenho e a pintura de Paula
Rego são inseparáveis da criação de histórias. A sua obra não é
literária, mas tem com o imaginário ficcional uma relação
privilegiada.
Tomados como protagonistas, os animais dominaram os
trabalhos dos primeiros anos 80, da série «O Macaco Vermelho», de 81, à
«Menina e o Cão», de 86, em intrigas de sexo e poder, protecção e
humilhação, sedução e violência. A metamofose que assegura a
humanização dos animais e a animalização dos humanos continua a
tradição das fábulas e dos contos tradicionais, adoptada também por
Disney, mas, onde os animais são chamados a exprimirem as relações
entre os humanos, as versões amáveis e moralistas dos contos dão lugar
à revolta e à abjecção.
Com frequência, Paula Rego recorreu à
adaptação de argumentos e à apropriação de personagens pré-existentes,
como sucede com as «Óperas», em 83, e com a série das Vivian Girls, em
84. Interessa-lhe também a prática considerada «menor» da ilustração,
como em «Nursery Rhymes» ou «Peter Pan». «Se a história me é 'dada',
tomo liberdades de modo que se adapte à minha experiência pessoal,
faço-a chocante», escrevera Paula Rego num breve texto que acompanhou a
sua participação na Bienal de São Paulo em 1985, representando a
Grã-Bretanha. A pintora acrescentava: «Os meus temas favoritos são os
'jogos' provocados pelo poder, o domínio e as hierarquias. Dá-me sempre
vontade de pôr tudo de pernas para o ar, desalojar a ordem
estabelecida».
Nas obras mais recentes os animais foram
gradualmente substituidos pela representação naturalista de pessoas
reais, numa evolução que se processou a par da densificação do trabalho
pictural. Paula Rego abandona uma expressão próxima da garatuja e da
banda desenhada, ao mesmo tempo que a composição se concentra na cena
única e o espaço se torna mais complexo, redescobrindo o volume, a
perspectiva e as sombras. Em 92, as «Histórias da National Gallery»,
histórias sempre, foram a oportunidade do encontro com a tradição do
museu, surpreendente situação de aprendizagem vivida por uma artista
que já alcançara a maturidade criativa e a consagração internacional." (todo o artigo aqui, 1996)
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