ARQUIVO, EXPRESSO / Cartaz de 28-01-95, pág. 5
Um novo colóquio em Serralves, depois do que teve lugar em 1990, então num contexto de paralisia e confusão política. Em 1995 as obras ainda não tinham começado
"Serralves: o ano decisivo"
Este é o momento certo para definir objectivos e compromissos claros quanto ao Museu de Serralves, corrigindo tudo aquilo que no seu projecto está mal encaminhado desde 1986
Graças à colaboração do Instituto Francês do Porto, a presença dos directores dos museus de Bordéus e Céret, da colecção pública regional de arte contemporânea (FRAC) do Languedoc-Roussillon e dos «affaires culturelles» do Franche-Conté, do «député-maire» de Sète e ainda dos directores da Inspecção Geral do Ensino Artístico e da Associação Francesa de Acção Artística, vindos de Paris, assegurou um excepcional nível de qualificação das comunicações estrangeiras.
Apesar da sua tradição centralista, a França vive desde 1985 um processo acelerado de regionalização, e o investimento na cultura — e na educação — é considerado como uma pedra angular da modernização das regiões e da reorientação do seu desenvolvimento económico. Em termos estratégicos mais globais, essa mesma descentralização corresponde à criação de novas redes de inter-relações comunitárias e, no plano externo, a vontade de aproximação aos países do Sul justifica-se pela necessidade de contrapor um bloco mediterrânico aos interesses maioritários da Europa do Norte.
Para quem esperava, porém, no âmbito das participações nacionais, ver equacionado o projecto de Serralves, esta foi uma oportunidade perdida. Os seus responsáveis desperdiçaram uma ocasião privilegiada para encerrar um longo capítulo nebuloso da história do Museu do Porto e delinear uma estratégia mobilizadora frente às novas realidades em presença.
É esse silêncio, que só foi quebrado nos bastidores do colóquio, que importa aqui ultrapassar, forçando o debate público.
A saída de Santana Lopes e o novo quadro político aberto por um ano de todas as eleições, por um lado, a reorganização da rede nacional de museus e a atribuição ao respectivo instituto, o IPM, das responsabilidades gestionárias no campo da arte contemporânea, por outro, fazem do momento actual a ocasião certa para definir apostas nítidas quanto a Serralves e para procurar corrigir tudo aquilo que, neste caso, está mal encaminhado desde 1986.
Parece ser inquestionável que Serralves e o Centro Cultural de Belém são os dois pólos decisivos de uma acção artística nacional voltada para a contemporaneidade e para a circulação internacional. As incertezas do futuro de ambos terão de ser, portanto, encaradas com urgência e em paralelo, com intervenção directa do IPM e no quadro da rede de museus dinamizada por Simoneta Luz Afonso.
Se em Lisboa o edifício já existe, mesmo que o módulo de exposições do CCB não deva limitar-se ao campo da arte moderna e contemporânea, a Fundação das Descobertas que supostamente o gere não passa de um caríssimo equívoco. Ela terá de ser desmantelada, assumindo o Estado a responsabilidade do mega-complexo polivalente que ergueu, sob uma fórmula a definir e recorrendo com realismo e transparência aos eventuais recursos mecenáticos.
No Porto, o projecto de Serralves terá também de ganhar uma nova credibilidade e o museu projectado por Siza Vieira deverá ser rapidamente construído. Perante a malha de museus e centros espanhóis de arte contemporânea (Valência, Las Palmas, Santiago de Compostela, Barcelona, Bilbao, Sevilha, Badajós, Cáceres, San Sebastian, etc, todos eles de iniciativa regional e/ou municipal), está em causa a travagem de um crescente desiquilíbrio cultural — e também turístico, de desenvolvimento económico e social — que terá consequências imprevisíveis para Portugal.
Para viabilizar esse projecto, que é nacional e regional, a estrutura gestionária de Serralves deverá ser repensada, conjugando-se as responsabilidades do poder central e local, quer estratégicas quer financeiras, com a Fundação já existente, mobilizadora de significativos recursos privados mas incapaz de assegurar, por si própria, a prossecução dos objectivos propostos — mesmo que para ela fossem canalizados anualmente todos os apoios privados às actividades culturais. Aquela conjunção de vontades e meios deverá, certamente, fazer-se no quadro de uma nova estrutura tripartida em que cada interlocutor assuma com clareza os seus objectivos e os investimentos que lhe cabem.
O facto de Santana Lopes ter exigido um acréscimo recente de representação do Estado na administração de Serralves, para depois nomear duas pessoas totalmente alheadas do projecto, Agustina Bessa Luís e Gomes de Pinho //o qual viria a revelar-se uma nomeação acertada// , afastando o presidente da Comissão Coordenadora da Região Norte, Luís Braga da Cruz, dá a medida de uma anterior lógica política em absoluto irresponsável.
Entretanto, a não definição pública de um projecto artístico preciso para Serralves, a inexistência de um programa museológico já em curso (antecipando-se, como sempre deve suceder, à construção das paredes do Museu), a ineficácia dos modelos de gestão a que uma visão defensiva das limitações estatutárias impostas à Fundação parece amarrar a sua administração — chegando ao absurdo máximo de defender a meta do auto-financiamento — são três factores que pesam actualmente sobre a credibilidade da instituição.
Pesa também sobre Serralves a ambiguidade da posição da Câmara do Porto, «membro por natureza» da Fundação, mas que nem sequer contribuiu com a quota inicial dos outros fundadores (dez mil contos...), e que foi porta-voz de candidaturas aos apoios comunitários, mas nunca assumiu uma real cumplicidade orgânica com o projecto.
Em terrenos culturais afins, que deveriam conciliar-se com a prioridade estratégica do Museu de Serralves, reconhecida pelo menos desde 1979, a indeterminação do projecto dos vários núcleos do Museu da Cidade, o recente anúncio de um Centro Cultural do Porto nos jardins do Palácio de Cristal (com mais um galeria de exposições e um custo anunciado de um milhão de contos) e, entre outros episódios, o escândalo do monumento à amizade entre o Porto e Matosinhos, confiado pelos respectivos presidentes das câmaras a dois artistas como Carlos Lança e Abreu Pessegueiro (mais cem mil contos e um provável mamarracho) são factores que não abonam a favor de uma descentralização consciente.
Por outro lado ainda, não é já possível ignorar-se o clima de difícil relacionamento entre Serralves e a cidade, quer com os seus artistas, quer com os interesses que os mecenas representam na própria Fundação, ao cabo de uma longa história de indecisões, adiamentos e conflitos — museu e centro de congressos, centro cultural multidisciplinar, museu e grande auditório; Museu Nacional de Arte Moderna ou Centro de Arte Contemporânea, horizonte cronológico a iniciar em 1910 ou em 1960; Cadeia da Relação, folhetim Santana Lopes, etc.
É certo que se entrou recentemente num processo de possível redinamização da Fundação, com a angariação de novos sócios fundadores (mais 16, até à data) e com a perspectiva de novas contribuições financeiras dos sócios entrados em 1989. Mas tudo isso é apenas uma gota de água perante a dimensão do projecto e os custos reais, nunca contabilizados com realismo, dos seus quatro vectores: edifício, orçamentos de funcionamento e de actividades, colecção. E talvez, segundo o modelo do Museu de Barcelona, devesse ser só esta última a área própria dos investimentos da Fundação.
Depois de diversas oscilações quanto ao projecto a implantar em Serralves (e Siza Vieira foi fazendo os sucessivos estudos), aponta-se agora para um único edifício dotado de um auditório de 350 lugares. Há expectativas — demasiado optimistas? — de que a construção se possa iniciar já este ano, embora se aguarde ainda a entrega do ante-projecto definitivo. Os apoios comunitários estão assegurados, mas os orçamentos e a vontade política do Governo são, pelo menos, incertos.
Por um lado, se Teresa Gouveia pôde comprar os terrenos de Serralves, em 1986, não conseguiu ultrapassar a recusa do primeiro-ministro em garantir os fundos necessários para a construção e financiamento do futuro Museu. Além de reflectir esse impasse, a ideia da Fundação, só concretizada três anos mais tarde (1989), traduzia tanto um propósito experimental de desburocratizar a gestão de equipamentos culturais, desligando o museu da máquina anquilosada do antigo IPPC, como o excessivo optimismo que então era possível depositar nas virtualidades do mecenato.
Quando foi forçada a abandonar o projecto, Teresa Gouveia deixou-o marcado por deficiências estruturais evidentes. Desde logo, pelo teor do artigo 2º do Decreto-lei 240-A/89, segundo o qual «o Estado assegurará, anualmente, para as despesas de funcionamento da Fundação, um subsídio equivalente ao despendido no ano de 1988 com a Casa e o Parque de Serralves». Essa verba ronda actualmente os 120 mil contos e é insuficiente mesmo para a actual escala de actividades.
Respeitando Serralves como afirmação pioneira de uma estrutura descentralizada, é indispensável definir a articulação do seu projecto com a acção do IPM. As razões que favoreciam a procura de uma solução de autonomia para Serralves (a degradação dos museus geridos pelo IPPC), aconselham hoje um relacionamento activo com o IPM — ou seja, a integração na rede nacional de museus, sem contrariar a especificidade de um modelo próprio de gestão.
Reabrindo-se todo o processo, sobre a base de uma efectiva garantia de vontade de construção e equipamento do Museu de Serralves, em que se associarão o Estado, a Câmara e a Fundação, é tempo de caracterizar sem equívocos o modelo de instituição a criar. É tempo de equacionar a relação entre as vertentes Museu e Centro de Arte, entre a sua importância nacional e regional, entre a vocação portuguesa e internacional, entre a sua área cronológica de competência artística e um alcance multidisplinar que integre não só a arte contemporânea em sentido estrito como as vertentes da criação industrial (o design, a moda, as artes ditas decorativas, as novas tecnologias da imagem), a arquitectura e a fotografia, explorando articulações culturais produtivas com os interesses económicos da regi
O que hoje parece oportuno defender para Serralves é a conciliação clara e afirmativa dos vários novos factores em presença. Definindo uma vocação museológica, de alcance internacional, que seja estruturante de uma acção programada de divulgação artística, capaz de proporcionar uma informação ainda inexistente sobre a modernidade histórica e voltada para a arte do presente e do futuro. Com um horizonte cronológico da sua colecção própria que tenha início por volta de 1945, dando sequência natural no Porto à definição temporal do Museu do Chiado e, em especial, ancorando a área de competência do Museu de Serralves na história artística da cidade. Por essa data, afirmava-se no Porto a «terceira geração moderna», através do grupo dos Independentes... É esse o imperioso ponto de partida de um museu portuense de arte contemporânea.
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