ARQUIVO, EXPRESSO, Cartaz, Actual, “Tribuna” de 18 de Março de 1995, pág. 5
(versão longa)
«Outras culturas
Nunca consegui considerar que o Centro Beaubourg era um museu de direita por ter sido inciativa do presidente Pompidou e que o Grand Louvre é um projecto de esquerda por ter saído da cabeça de Mitterrand. A crítica de Baudrillard (L'Effet Beaubourg, de 1977) é que ficou a fazer parte da arqueologia ideológica da esquerda: «porque a cultura morreu...», dizia ele.
Neste terreno, que não é exactamente o da resposta à exclusão social, a diferença entre esquerda e direita deixou de se fazer em torno da razão de ser de um museu ou de uma sala de ópera, a menos que se sacrifiquem as ideias à reedição de formulários. «O papel essencial do Estado é de atribuir meios. O que quer dizer comprar, fazer encomendas, equipar centros de estudos e de pesquisa, organizar ou facilitar exposições... Que outra coisa poderia ele fazer, a menos que tentasse criar uma arte oficial? Que o Estado atribua meios, portanto, e depois que deixe agir o génio do seu tempo e do seu povo.»
A citação é de Pompidou, em 1972, ao determinar a construção do centro que teria o seu nome, e ainda serve, em Portugal, para fundamentar uma política cultural contrária à do Governo cessante, não só baseada no «bom senso» como na consideração dos instrumentos que asseguraram noutros países a existência de panoramas culturais mais informados e criativos.
Existe, por isso, um défice a tal ponto acumulado da rede das estruturas centrais de conservação, produção e difusão cultural, que é imperioso conceder-lhe uma das prioridades de uma nova política apostada no estabelecimento de valores culturais minimamente compatíveis com a Europa circundante. Também já se sabe que não é das bandas de música que, um dia, por um qualquer miraculoso salto qualitativo, nascem as orquestras sinfónicas, embora os seus diferentes universos de acção devam coexistir e por vezes se cruzem.
O documento sobre a Cultura não é «estatista» (mesmo que tentações estatizantes ainda se possam encontrar num ponto ou noutro), nem é certo que nos equipamentos centrais se concentrem todos os recursos e ambições. Acontece que eles devem existir (a rede nacional de museus, os teatros nacionais, etc) como vértices de uma estrutura cultural que é funcionalmente hierarquizada — a estrutura cultural pela qual o Estado é responsável... não a vida cultural, que é policêntrica, móvel, indisciplinada — e devem cumprir as suas funções por razões de saudável eficácia gestionária. Sai sempre mais caro fazer e desfazer ao saber dos humores de um qualquer secretário de Estado. Mas não se trata, de modo algum de «preferir uma administração das disciplinas, portanto dos homens» (M.P.); trata-se apenas de administrar equipamentos, terminando com a delapidação de recursos, e atribuindo-lhe os meios necessários à sua urgente qualificação.
E trata-se também de estabelecer critérios claros sobre quais «os territórios, os espaços» e as iniciativas cuja administração cabe ao Governo e quais os que correspondem à esfera de actuação dos cidadãos, do mercado, das associações, das universidades, das regiões e das autarquias, assegurando a sua autonomia, regulando-a quando necessário, apoiando-a através da contratualização de programas nos terrenos em que tal se justifique. Essa clarificação constitui outra das prioridades e não é compatível com as crenças subjacentes na ideia da «distribuição do poder cultural pela sociedade». Quem distribui o quê?
Tão urgente como fazer funcionar exemplarmente os equipamentos culturais do Estado, é tornar operacionais os Institutos que têm por missão zelar pela conservação do património ou apoiar a actividade teatral. Nestes e noutros domínios as prioridades apontam ora para o estabelecimento de critérios de competência na nomeação das suas direcções e, em geral, para a recomposição de uma estrutura administrativa que foi levianamente desmantelada, ora para a redefinição de políticas assentes no diálogo com os agentes culturais e na resposta à diversidade das situações das diferentes áreas da Cultura.
Sem a ingenuidade de importar convicções neo-liberais para um sector que depende inevitavelmente da intervenção estruturante do Estado, no assegurar de condições de produção e difusão, mas sem pretender colocar qualquer chapéu «socialista» sobre o que mais importa favorecer e difundir : a criação.
Versão publicada
Depois de uma primeira abordagem crítica ao documento sobre Cultura dos Estados Gerais (no «Cartaz» anterior, <da autoria de Miguel Portas: "Cultura socialista"), permita-se uma outra aproximação, declaradamente cúmplice.
Nunca consegui considerar que o Centro Beaubourg era de direita por ter sido inciativa de Pompidou e que o Grand Louvre é de esquerda por ter saído da cabeça de Mitterrand. A crítica de Baudrillard (L'Effet Beaubourg) é que ficou a fazer parte da arqueologia ideológica da esquerda: «porque a cultura morreu...», dizia ele.
Neste terreno, que não é exactamente o da resposta à exclusão social, a diferença entre esquerda e direita deixou de se fazer em torno da razão de ser de um museu ou de uma sala de ópera.
«O papel essencial do Estado é de atribuir meios. O que quer dizer comprar, fazer encomendas, equipar centros de estudos e de pesquisa, organizar ou facilitar exposições... Que outra coisa poderia ele fazer, a menos que tentasse criar uma arte oficial? Que o Estado atribua meios, portanto, e depois que deixe agir o génio do seu tempo e do seu povo.» A citação é de Pompidou, de 1972, e ainda serve para fundamentar uma política cultural contrária à do Governo cessante, não só baseada no «bom senso» como na consideração dos instrumentos que asseguram noutros países panoramas culturais mais informados e criativos.
Em 1986, o Governo comprou a Quinta de Serralves, mas não quis ou não soube fazer o museu prometido; em 1992 inaugurou o CCB, mas não lhe atribuiu os meios para cumprir o seu «papel essencial». O mesmo, ou pior, se passou nos terrenos da música, da dança, do livro, etc. Existe, por isso, um défice a tal ponto acumulado da rede das estruturas centrais de conservação, produção e difusão cultural, que é imperioso conceder-lhe uma das prioridades de uma nova política apostada no estabelecimento de valores culturais compatíveis com a Europa circundante.
O documento sobre a Cultura não é «estatista» (mesmo que tentações estatizantes ainda se possam detectar num ponto ou noutro), nem é certo que nos equipamentos centrais se concentrem todos os recursos e ambições. Acontece que eles devem existir (a rede de museus, os teatros nacionais, etc) como vértices de uma estrutura cultural que é funcionalmente hierarquizada — a estrutura cultural pela qual o Estado é responsável... não a vida cultural, que é policêntrica, móvel, indisciplinada — e devem cumprir as suas funções por razões de saudável eficácia gestionária.
Mas não se trata, de modo algum, de «preferir uma administração das disciplinas, portanto dos homens»; trata-se apenas de administrar equipamentos, terminando com a delapidação de recursos, e atribuindo-lhe os meios necessários à sua urgente qualificação.
E trata-se também de estabelecer critérios claros sobre quais «os territórios, os espaços» cuja administração cabe ao Governo e quais correspondem à esfera de actuação dos cidadãos, do mercado, das associações, das universidades, das regiões e das autarquias, assegurando a sua autonomia, regulando-a quando necessário, apoiando-a através da contratualização de programas nos terrenos em que tal se justifique. Essa clarificação constitui outra das prioridades e não é compatível com as crenças subjacentes à ideia de «distribuição do poder cultural pela sociedade». Quem distribui o quê?
Tão urgente como fazer funcionar exemplarmente os equipamentos culturais do Estado, é tornar operacionais os Institutos que zelam pelo património ou apoiam o teatro. Nestes e noutros domínios as prioridades apontam ora para o estabelecimento de critérios de competência na nomeação das suas direcções e, em geral, para a recomposição de uma estrutura administrativa que foi levianamente desmantelada, ora para a redefinição de políticas assentes no diálogo com os agentes culturais e na resposta à variedade das situações das diferentes áreas da Cultura.
Sem a ingenuidade de importar convicções neo-liberais para um sector que depende inevitavelmente da intervenção estruturante do Estado, no assegurar de condições de produção e difusão, mas sem pretender colocar qualquer chapéu «socialista» sobre o que mais importa favorecer e difundir : a criação.
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