ARQUIVO, EXPRESSO, 1º Caderno, Opinião, 18 Março 1995, pág. 18
"MUDAR A POLÍTICA"
Os Estados Gerais não retiram a sua novidade essencial dessa mobilização dos independentes, nem é a mera quantidade deles que faz a diferença. Não é também a valorização da ambígua qualidade da independência — que recobre muito diversas situações individuais, da não filiação partidária à mais ou menos recente desfiliação, do desgosto perante o «mundo da política» até ao alheamento cívico —, que mais importou na orgânica e na actividade dos Estados Gerais, ou na sessão triunfal do Coliseu.
Importa antes sublinhar três vectores que são inéditos nesta iniciativa desencadeada pelo PS: fez-se uma experiência de deslocação da política do terreno da propaganda para o plano da real consideração da situação do País e dos meios de a corrigir, estabelecendo diagnósticos e definindo intervenções prioritárias; reuniram-se especialistas e técnicos, na base da sua competência profissional e da vontade de participação, sem que tal significasse o esvaziamento das opções ideológicas, antes propiciando a integração nesse debate de novas ideias sobre a questão social; por último, essa mobilização constituiu uma verdadeira prova de fogo para o próprio aparelho partidário, as suas certezas e rotinas de funcionamento.
Os documentos produzidos encontram-se, por isso, à distância tanto dos bem intencionados «debates de ideias» (vagas) como dos compromissos precisos de um programa de governo: inauguram um outro modo de pensar a política, já não sobre a retórica das declarações de princípios e de intenções, mas sobre a afirmação de uma nova cultura, capaz de entender as diferenças da crise social do presente e de inventar renovadas formas de solidariedade a ela adaptadas, no quadro global de uma mutação actual de civilização e na atenção concreta ao atraso português. Capaz, ainda, de recuperar para a esquerda a vontade da eficácia gestionária e de fazer desta uma condição para vencer os inéditos fenómenos da exclusão social de hoje, integrando no seu vocabulário palavras «difíceis» como elite, responsabilidade, dever, iniciativa, competitividade e competência, como defendeu Maria João Rodrigues num dos mais significativos discursos do Coliseu.
subt.: Um abanão no aparelho
Ao desencadear todo este processo, António Guterres submeteu o seu partido a um abalo de consequências imprevisíveis, pelo mero facto de ter forçado a coexistência, em todas as instâncias da organização dos Estados Gerais e em toda a dinâmica desencadeada (debates sectoriais, sessões públicas e redacção dos documentos), entre os quadros do aparelho partidário e os independentes. Essa inédita condição de igualdade entre o aparelho e os «outros», estando estes, aliás, em forte maioria numérica, inevitavelmente conduziria a situações de concorrência (colaborante, mas por vezes tensa), tanto mais que os dirigentes e militantes foram colocados em confronto directo com os especialistas, os profissionais, os técnicos nos terrenos de competência destes.
No entanto, quando houve casos de bloqueio ao alargamento dos debates — e, por vezes, era certamente possível ter ido mais longe —, eles ter-se-ão ficado mais a dever à pretensão de certos independentes a representarem todo o seu universo social do que a um fechamento das estruturas do PS.
Se Guterres perder as eleições, o aparelho far-lhe-á pagar caro a «provação» por que passou, esquecendo depressa o efeito energético que essa competição lhe trouxe. Se ganhar, está aberta a porta para uma profunda renovação do partido, nos seus meios de articulação com a população e os processos sociais, nas suas regras de actuação e nos seus quadros.
O facto de ter sido decidida por Guterres a não desmobilização dos conselhos coordenadores dos seis sectores dos Estados Gerais, até às eleições e mesmo depois delas, é uma opção de longo alcance que não foi suficentemente destacada nos relatos da sessão do Coliseu. Novos estudos sectoriais e inter-sectoriais são necessários, obviando à longa ausência do Poder e como preparação do programa de Governo, e também os instrumentos legislativos e planos de acção concreta deverão estar prontos até Outubro, já preparados sob a orientação dos futuros governantes.
Será, no entanto, o próprio ineditismo do projecto dos Estados Gerais que justifica a incapacidade de muitos dos que fazem a informação e o comentário político para avaliarem mais justamente todo o alcance da iniciativa. Por uma vez o debate distanciou-se da política praticada como mera auto-afirmação e confrontação partidária, para se centrar, com a diversidade adequada às diferentes problemáticas sectoriais, nas questões «simples» da detecção dos problemas, de como governar e com que objectivos.
subt.: Rotinas jornalísticas
Nas vésperas do Coliseu, os «analistas» não acharam necessário ler os extensos documentos produzidos, assim demonstrando quer a sobranceria e leviandade com que comentam a vida partidária, quer a cumplicidade que mantêm com os mais vulgares modos da política. No Coliseu, a Comunicação Social preocupou-se em adivinhar futuros ministros mas dispensou-se de os escutar quando eles apresentavam os seus planos de acção. Preferiu reafirmar as alianças já conhecidas com os ex-comunistas da Plataforma de Esquerda e com os democratas-cristãos do CDS, e insistiu em descortinar os cambiantes da retórica dos dirigentes do PS, mas não quis prestar atenção às inovações teóricas e aos contributos programáticos concretos que traduziam as muito diversas experiências de empenhamento profissional e de activismo político ou social dos participantes.
No entanto, a diferença entre a sessão final dos Estados Gerais e um comício fizeram-na em especial as intervenções de José Mariano Gago, Vital Moreira, Rui Vieira Nery, José António Pinto Ribeiro, Maria João Rodrigues, Manuela de Melo, Bruto da Costa, Henrique Neto, Daniel Bessa e Gomes da Silva, alguns deles já antes designados como porta-vozes do PS. E também os discursos de Fernando Gomes, sobre a regionalização e as novas problemáticas da vida urbana, de António Vitorino, introduzindo o entusiasmo das dinâmicas de vitória, porque não basta ter ideias para ganhar eleições, e de António Guterres, interpretando a originalidade do processo de reflexão e acção que ele próprio desencadeara.
Mais de sete horas de discursos perante uma sala cheia e atenta, por vezes vibrante quando foi caso disso, sem que nenhuma circunstância dramática justificasse tal mobilização, testemunham a existência, dentro e fora do PS, de uma real expectativa de mudança sobre o que pode ser o discurso político, e a ela correspondeu, aliás, uma eficácia organizativa que surpreendeu até os que tinham colaborado na sua preparação. Aquela «resistência» não seria certamente atingida se a sessão se preenchesse apenas com as intervenções dos representantes partidários e, por outro lado, a opção por uma excessiva mediatização espectacular da jornada teria desbarato o seu capital de diferença.
A originalidade da sessão do Coliseu não foi entendida por quem a queria ver como uma celebração rotineira do autismo dos políticos, adornada com o triunfalismo de uma manobra bem sucedida de aliciamento dos independentes. O que a Imprensa soube ouvir (e estou particularmente à vontade para o escrever) foi apenas aquilo que a podia confirmar na facilidade das próprias rotinas jornalísticas. Enquanto instância de mediação, é ela que precisa agora de repensar as suas regras.
* Participante nos Estados Gerais, sem filiação partidária.
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