Uma revista de espectáculos ou artes performativas com um insólito nome, "Obscena", propôs-se analisar os programas dos cinco partidos de maior circulação e apresentar por sua vez "os princípios orientadores de uma política para o sector cultural" (link) É uma iniciativa meritória, num campo dupla ou triplamente em crise e pouco comentado. Por acaso, ou não, as divergências são muitas, logo ao nível das generalidades abstractas. Segue a transcrição das orientações propostas (em itálico) e as reflexões a propósito.
O PREÂMBULO do documento não é aqui comentado e contém observações relevantes. Aí se diz:
" (...) assiste-se a um aumento quase errático de atribuições e competências com efeitos externos ao Ministério da Cultura, sem que paralelamente se proceda quer a uma avaliação crítica e interna dessas competências, quer a uma clarificação dos recursos financeiros disponíveis. O resultado não é outro senão a transformação do Ministério da Cultura num edifício insustentável."
Primeiro, dois ou três princípios prévios:
1) O Ministério da Cultura não é o Ministério das artes, nem o ministro da Cultura é o representante, intérprete ou advogado dos artistas junto do Governo, visando a satisfação das aspirações e interesses de cada um dos diferentes sectores artísticos, tutelando-os ou definindo as respectivas dinâmicas ou “políticas”. É assim que tem sido encarado pelo “mundo da cultura” e é um tal papel de representação dos artistas e candidatos a artistas que costuma ser avaliado como positivo ou negativo. Substituir artistas por “criadores”, adicionando sempre mais disciplinas artísticas ou sugerindo interdisciplinaridades, não muda a questão.
A soma de interesses corporativos não faz uma política cultural. O MC terá responsabilidades face aos escritores, mas também face aos leitores e aos não leitores; face aos artistas e também aos seus públicos efectivos ou potenciais e ao não-público em geral. Aliás, terá responsabilidades quanto às instituições públicas da cultura dele dependentes, mas não quanto às idênticas ou concorrenciais actividades culturais públicas e privadas vinculadas a outras entidades administrativas ou independentes de tutelas, colectivas ou individuais. A expressão “política cultural” pode referir a dinâmica interventiva do MC para um determinado sector mas não pode pretender determinar o que acontece em geral nesse mesmo sector; nem pode ser a soma, mais ou menos coerente, de políticas para cada um dos sectores profissionais ou artísticos (“política de teatro” ou para o teatro, por exemplo, refere-se à relação do MC com as companhias e espectáculos subvencionáveis por essa instância específica do governo central, e não pode visar ou condicionar as outras dinâmicas sectoriais, locais, particulares, etc).
2) A expectativa tradicional do 1% do orçamento do MC (que este documento já não refere) deve conciliar-se com a realidade da transferência de responsabilidades para a administração regional e local. A desconcentração de poderes e a descompressão de interferências centralizadoras, bem como a instituição de parcerias e o estímulo do mecenato, tal como a desburocratização de serviços têm de reflectir-se na redução do peso institucional e orçamental do MC. Por outro lado, os orçamentos para a cultura das autarquias locais e as contribuições de outros ministérios para a actividade cultural ultrapassam em muito o mítico e demagógico 1% orçamental. A desorçamentação continuada dos equipamentos oficiais e serviços públicos e o crescimento das verbas atribuidas a entidades alheias ou mistas, a eventos e em geral a iniciativas promovidas ou apadrinhadas pelo Gabinete, foram tornando os primeiros irrealistas e estas descontroladas. Será preciso refazer a carteira das responsabilidades e as contas.
3) Não sendo um árbitro do gosto ou um patrão das artes, o ministro da Cultura não deve ser uma figura sempre disponível para abrilhantar sessões e inaugurações, cuja presença é exigida por toda a parte para as mais diversas e irrelevantes celebrações, forçada aos mais diversos esforços oratórios. A descentralização, desconcentração e delegação de responsabilidades justificam-se em absoluto nestes casos, libertando tempo para um mais atento estudo de dossiers. Se a existência do Ministério (ou Secretaria de Estado) se justificam, a visibilidade excessiva dos seus titulares é um mau serviço à Cultura.
“PRINCÍPIOS ORIENTADORES"
Os interesses financeiros, as apostas da promoção turística, as conveniências da representação internacional, as regras da actividade escolar, as opções do desenvolvimento tecnológico, os critérios da investigação académica, etc, não coincidem em geral entre si e não se conjugam pacificamente com as lógicas próprias da actividade cultural independente e da criação artística. A articulação possível deve implicar também a potenciação da concorrência e da diversidade conflitual (por exemplo, a circulação cultural por canais diplomáticos não deve silenciar outros circuitos de representação ou coprodução cultural externa).
Por outro lado, não deverá pensar-se que a “política cultural” do sector público de governação da Cultura esteja predestinada a exercer na prática e com proveito geral aquela articulação de prioridades e estratégias, ou que detenha uma qualquer autoridade sobre os outros sectores. Pelo contrário. Além de o MC ter uma existência desprestigiada e muitas vezes posta em causa, talvez por um voluntarismo excessivo e sem consequências, talvez por uma passada tentação autoritária, a Cultura – seja como indústria e consumo massificados, seja como “institucionalização” de gostos ou como criação de alternativas – é uma área alheia à consensualidade e, quase sempre, à regulação normativa. A existência de sedes diferenciadas de “políticas” (de acções, de iniciativas) consideradas culturais, em diferentes sectores da governação, central e/ou local, é uma garantia de independência, vitalidade, concorrência e diferença, contra a "política do gosto", ou melhor, das modas, e a centralização autoritária.
A descentralização de competências para as autarquias locais, como saudável princípio genérico, exige a reformulação da organização territorial e deve ser simultaneamente desenvolvida com o redesenhar de mapas concelhios e a criação de estruturas intermédias que agrupem e coordenem autarquias num outro nível administrativo, as regiões (resolvendo o que se tornaria não autárquico mas autárcico). A descentralização de competências envolve a transferência de tutelas sobre equipamentos e serviços (museus, património edificado, serviços reguladores, etc) e sobre instâncias de financiação-subsidiação, distanciando-as inequivocamente dos núcleos centralizados de escolha e decisão, ou do gosto do centro. A participação de entidades privadas (associativas, cooperativas, empresariais, individuais) não pode ser vinculada à “política cultural” ou estar dependente de estratégias do MC. A lógica das redes, pensada sobre o modelo das bibliotecas concelhias, e apresentada antes como uma orientação autoritária, tem de nascer de necessidades sentidas localmente e a todo o momento voluntariamente partilhadas.
" a. Reestruturação orgânica. Avaliação das funções e da oportunidade das Direcções Regionais de Cultura e do GPEARI. Elaboração do enquadramento necessário para a transferência de competências para as autarquias locais. Definição das obrigações, competências e responsabilidades das estruturas agregadas no OPART, à luz dos contratos-programa criados para organismos similares como os Teatros Nacionais. Definição de um quadro uniforme da presença do Estado nas Fundações sob administração indirecta da tutela. Atribuição de autonomia administrativa e financeira a museus sob alçada do Instituto dos Museus e Conservação."
A defesa e promoção da Língua e da Criação Nacionais, o Património Monumental e o Turismo Cultural, a Educação Artística, o Audiovisual, e a Avaliação e Promoção do Valor Económico da Cultura são políticas necessariamente intersectoriais. O governo deve criar o necessário enquadramento orçamental e institucional para permitir a gestão partilhada destas políticas pelas várias pastas envolvidas, nomeadamente: Negócios Estrangeiros, Cultura, Educação, Ciência e Ensino Superior, Economia e Finanças. "
Boas palavras, mas quem avalia os avaliadores? Quem desburocratiza a burocracia?
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