ARQUIVO, EXPRESSO, Cartaz, Livros de 11-02-95, pág. 24
«Recomeçar a falar»
sobre DE QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DE CULTURA?, de Fernando Pereira Marques
O título poderia sugerir uma abordagem reflexiva sobre as muitas definições possíveis de cultura, para as substituir por mais uma. Mas logo nas primeira páginas o autor rejeita essa via para enveredar por uma direcção mais consentânea com o que tem sido a sua intervenção como deputado (do PS) e presidente da Subcomissão parlamentar de Cultura. Não se trata aqui de teorizar sobre «o que é», mas de pensar «como é» — a cultura, a administração e gestão da cultura, a política cultural —, ora analisando de perto as vicissitudes do caso português, ora com recurso comparativo a alguns exemplos históricos ou geográficos mais próximos.
Aliás, foi no contexto preciso do ano da capital cultural que F.P.M. escreveu o seu livro, perante um acréscimo de oferta que se sabia ser só episódico, e tentando fazer das expectativas geradas a oportunidade para sumariar dados e questões que permitissem pensar «aquilo que por vezes parece desesperantemente impossível: uma política cultural».
Na Assembleia, ao longo dos últimos anos, o autor foi a voz mais esforçada na tentativa de perfurar a blindagem com que os recentes titulares da SEC impediram qualquer debate sério sobre as linhas de acção e as contas com que fizeram mais política do que cultura. Paradoxalmente, terá sido no domínio da cultura que o Governo se mostrou, afinal, mais inculto e mais inconsequente, tudo sacrificando a objectivos de curtíssimo prazo e de imagem pessoal, mas também terá sido neste terreno que a oposição, em particular o PS, revelou mais dificuldades para responder aos acontecimentos, produzir uma análise fina das contradições em jogo no país e definir alternativas programáticas claras, correndo por isso o risco de alienar para o campo ideológico do adversário as ambições, naturalmente volúveis, e também os êxitos dos criadores e agentes culturais.
De facto, a oposição socialista foi-se deixando prender num abraço paralisante em que se encontravam os defensores de um liberalismo extremo, surgidos no seu próprio campo e apostados em negar o papel de um Estado moderno como encomendador (importante, mas não único) da criação contemporânea e como árbitro dos mecanismos do mercado, e, por outro lado, as manifestações de um frentismo dinossáurico, onde a demagogia se casava com traços de um inequívoco conservadorismo cultural.
Apesar de acontecimentos como a Europália e a Capital Cultural terem escapado, em grande medida, ao controle do partido dominante e do Governo (ambos foram, afinal, liderados por militantes socialistas e permitiram compensar no terreno da criação artística a gestão atrabiliária do titular da SEC), uma manifesta incompreensão da importância das dinâmicas geradas pelos respectivos projectos e também dos próprios níveis de qualidade atingidos pela sua programação não terá permitido contrariar uma imagem pública de permanente incomodidade, no preciso momento em que os intelectuais que antes se tinham deixado seduzir pela gestão de Teresa Gouveia se íam incompatibilizando com o seu sucessor.
Se o novo lugar emblemático de uma assumida capitalidade, o CCB (sem esquecermos o descontrole da sua construção e os equívocos da sua gestão), também nunca foi entendido pela oposição, igualmente as questões da descentralização não deram origem a um claro protagonismo alternativo e os seus pólos de poder autárquico foram-se revelando incapazes de, concertadamente, definirem modelos inovadores de entendimento da cultura, caindo antes em investimentos de fachada e em estratégias de «animação» equivalentes às do poder central.
Por tudo isso, o debate sobre as realidades da cultura revestiu-se, nos últimos anos, de uma carga de incompreensões, de atrasos conceptuais e de facilidades televisivas que agravou consideravelmente a distância entre os políticos e, por outro lado, os criadores e consumidores, tal como se alargou o abismo nacional face às novas relações entre cultura e desenvolvimento económico, num quadro de intensas circulações internacionais onde se afirmam agora as componentes nacionais e regionais.
A análise de F.P.M. é, acima de tudo, uma tentativa para sair desses múltiplos impasses, atravessando uma problemática muito variada que raramente tem sido objecto de análise sistemática e quantificada. O seu itinerário desenvolve-se como uma reflexão pessoal através dos vários vectores de um quadro onde os sinais de atraso nacional se cruzam com sinais embrionários de mudança, onde os episódios burlescos dos últimos «anos de ouro da cultura» se chocam com novas concepções sobre o financiamento da cultura ou sobre os consumos culturais.
Se por vezes afloram formulações ainda limitativas de uma abertura mais produtiva às contradições do presente, que não se deixam encerrar em oposições simples entre democratização e massificação, «show business» e «reforma das mentalidades», também é certo que os mecanismos do mercado são aqui encarados sob perspectivas menos catastrofistas que em outras ocasiões, a realidade das «indústrias culturais» já não merece a condenação de um ponto de vista nostálgico, e o papel paternalista e subsidiador do Estado vai dando lugar à atenção necessária às variadas articulações possíveis entre iniciativa pública, mecenática, associativa e privada.
F.P.M. faz um repetido apelo ao «equilíbrio e bom senso», dirigindo-se em especial ao seu próprio campo partidário, no sentido de abrir novas possibilidades de entendimento do presente e de definição de linhas de acção, certamente requeridas pelas perspectivas de governo que se abrem a curto prazo.
(Editorial Presença, 156 pág., 2250$00)
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