ARQUIVO / Expresso Revista de 23 Novembro 1991 , pág 12
"Antigos e novos feitos"
(Na entrada de novo governo, depois de Santana Lopes I)
ENTRE as pressões contrárias do calen dário e do orçamento estar-se-ão certamente a procurar, na Ajuda, as respostas para várias questões herdadas no terreno da Cultura. Por exemplo, ao acaso: como o Outo no vai adiantado, não se devia conhecer já a temporada de S. Carlos? Estão a programar-se com a prudente antecedência os primeiros anos do Centro de Belém, depois da inauguração efectiva ser adiada para 93? Ou, passando logo às vertentes de representação externa: retocam-se os programas culturais e festivos com que se desejou preencher as noites de alguns burocratas comunitários arrastados a Lisboa por seis meses, graças à fatal itinerân cia da capital europeia? Preparam-se museus e festivais, palácios e catedrais, para acolher melhor uns milhares de turistas culturais que virão no próximo ano ao engodo europaliano? Estudam-se os convites para participar na torrente de programas espanhóis de 92, em Madrid e Sevilha? Vão mobilizar-se consen sos e energias para corresponder ao desafio de, em 94, se chamar a Lisboa capital cultural?
É provável que no Programa do Governo venham contempladas preocupações como essas, mas a formulação usa um estilo que se julgaria mais próprio de quaisquer Jugoslávia ou Iraque em armas: «O enaltecimento da componente cultural da comunidade nacional», «a enfatização da cultura própria», «a valorização do que nos distingue e orgulha», «a evocação de feitos que engran decem a nossa Nação e que se tornaram património universal».
Passando desse mundo de «feitos» eternos ao presente dos factos e dos efeitos, o que parece existir à partida é o espectro de um Orçamento que ficou praticamente esgotado no início do Verão, incluindo as verbas de um Fundo de Fomento Cultural de paradeiro sempre obscuro. No Palácio da Ajuda, perdida a batalha da passagem a Ministério, tudo estará agora concentrado em conseguir para o próximo ano uma fatia mais condizente com as obrigações que ficaram por cumprir. Porque há as questões do património, com prazos certos para aproveitar verbas europeias (e elas impõem a contrapartida das contribuições nacionais); e há ainda os museus, os arquivos, a biblioteca central - tudo sorvedouros onde a paz não se fez na legislatura ou nas décadas anteriores. E ainda o teatro, com festival prometido, e as orquestras, os livros para África, e, se calhar, uma feira de arte ...
Com a criação do Instituto Português dos Museus (presidido por Simoneta Luz Afonso), do Instituto do Cinema e do Audiovisual (certamente orientado por António Pedro Vasconcelos), de um possível Instituto das Artes Cénicas, há meses anunciado, de um previsto Instituto de Camões, que irá tentar responder ao espanhol Instituto Cervantes, é possível que se dêem, brevemente, alguns passos no sentido de melhorar a coordenação funcional de uns quantos sectores.
Mas o que caracteriza a situação presente é um estado de carência geral e profunda, publicamente reconhecido mesmo se tem sido possível protegê-lo com a discrição sobrancei ra que os assuntos da cultura merecem a alguns políticos. Um estado de défice permanente, de estruturas, de informação, de condições de criação, a que, por outro lado, corresponde a pressão de crescentes compromissos interna cionais exigindo abundância de meios e eficácia de estruturas que não existem. E não impor ta agora saber se esses compromissos foram levianamente assumidos ou impostos por regras elementares de convivência externa; afinal, na falta de outros estímulos, é possível que eles vão forçando, como sucedeu com a Euro pália, a aprendizagem de alguns critérios de eficácia.
A questão emblemática vai ser, este ano e nos próximos, a de construir (depois de pronta a fachada) a justificação prática para a existên cia do monumento cultural de Belém. Passa das algumas semanas de curiosidade popular em percorrer as esplanadas e avenidas do Centro Cultural, será preciso abrir os salões. Com uma produção constante de acontecimentos capazes de criarem um público regular de consumidores que, depois das estreias de gala, os animem em permanência. O exemplo londrino do South Bank, com a sua oferta diferenciada de museus, exposições, concertos e teatros, é um exemplo possível que poderia servir de orientação. Mas ele tem atrás de si todo um outro universo cultural. Diferentes «feitos» e outros gostos.
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