"o que é ist?"
É um documentário fotográfico sobre a transformação por que está a passar o Instituto Superior Técnico (IST), é uma edição comemorativa dos 50 anos da morte de Duarte Pacheco, é um livro de fotografias que parte das duas condições anteriores para ser, acima de tudo, acima das exigências da encomenda, mas cumprindo-as plenamente, um livro de autor, um livro de fotógrafo. O título ist , ao mesmo tempo directo e enigmático na sua fórmula gráfica, que não é a da sigla do Técnico, condensa essas várias dimensões como uma legenda mínima e abre-se a todas as interrogações. ist, de Augusto Alves da Silva, é o mais admirável livro de fotografia publicado em Portugal desde que, em 1959, Victor Palla e Costa Martins fizeram Lisboa «Cidade Triste e Alegre».
Vai ser lançado no próximo dia 19 — no IST, naturalmente (às 18h, no Centro de Congressos) — e dará depois origem a uma exposição na Culturgest, no Verão. Com 172 páginas encadernadas, inclui um curto prefácio de Diamantino Durão e dois textos de Jorge Calado — «Introdução ou a Razão de um Projecto» e «Refutações de Estilo» — e 131 fotografias, com uma qualidade também excepcional de impressão (de Marca Artes Gráficas, Porto).
Abram-se as páginas das primeiras guardas: uma banda horizontal de seis imagens onde se vê uma professora (ou aluna?) a escrever no quadro, e mais duas metades de fotografias, em ambos os extremos, que, com atenção, se perceberá não corresponderem exactamente à mesma sequência cronológica. Afinando a observação, notar-se-á ainda que duas das fotos estão repetidas. Fica «dito» que o fotógrafo-testemunha constrói a realidade que apresenta — que representa. O que se vê não é o que parece, ou o que parece não é o que se vê. Uma questão de moral fotográfica.
Ao lado do frontispício (o design tipográfico é de Paulo Vieira Ramalho, a paginação das fotografias de Augusto Alves da Silva e a direcção do projecto de Jorge Calado), a única imagem a preto e branco de todo o livro: um antigo quadro negro no qual se descortinam dois falos desenhados — a encomenda oficial é, pode ser, um terreno de criação em liberdade. Depois, passados os textos introdutórios, entramos no Técnico por um caminho ziguezagueante, entre paredes impecavelmente verticais que constroem um sistema de eixos oblíquos, acentuado por uma faixa inclinada de sombra sobre o empedrado — numa inscrição desbotada pode ler-se «Os ricos que paguem a crise»: a fotografia, ficamos a saber, é também uma questão de política.
No plano seguinte, duas fotografias «a morder» começam por se ser uma única vista panorâmica e abrem-se, depois, a uma identificação de sentidos contraditórios: diante de uma-duas cortina(s) de árvores, um estaleiro de obras e, na segunda imagem, uma bucólica casa de madeira ao fundo de um jardim (estamos no Técnico?, os tempos são os mesmos?, o estaleiro destruiu o jardim ou deu lugar a este?).
Vire-se mais uma folha. À esquerda, a fachada nobre do IST atravessa a página em diagonal, mostrando com a máxima nitidez a sua arquitectura modernista funcionalmente monumental, com a sóbria decoração Art Déco, entre um pano de céu azul e, em baixo, o estacionamento caótico do presente — mas no aparente rigor de uma fotografia friamente comercial existe um elemento de perturbação discreta: no canto superior direito entra o braço de um guindaste. À direita, em escala menor, frontalmente enquadrado, um outro dos antigos edifícios diante da larga calçada da Alameda: reconhece-se a dimensão humana do antigo Técnico dos anos 30, mas também se pode adivinhar, à direita, o telhado de um dos barracões que foram invadindo o terreno livre, e um cesto de papeis, laranja, absurdamente situado, interrompe a pureza geométrica da porta do pavilhão. Cada imagem é aquilo que o fotógrafo quer que ela seja — e esta pode ser uma auto-citação de A Cidade dos Objectos, um trabalho de A.A.S. de 1991 (Serralves/Centro Português de Design).
A seguir, em contraste brutal, duas fotografias das obras em curso no interior de uma das novas construções do IST. Está traçado o espaço onde nos moveremos até final, seguindo um fotógrafo que executa um projecto desmesurado: registar a vida de uma escola no momento em que decorre a concretização de um plano de expansão e transformação das suas instalações. E está também apresentado um quadro de incerteza deliberada de todas as imagens, onde a falta de uma ordem cronológica é só a mais palpável prova da instauração de uma dúvida do que cada fotografia e a sua sequência total «querem dizer». Nenhuma chave será fornecida, excepto a de que à possível transparência das descrições se seguirá sempre, para quem quiser ver, a permanente diversidade das leituras.
SEQUÊNCIA E CAOS
Um livro de fotografia não é só um livro de fotografias. Como um filme ou uma obra de ficção, as imagens publicadas num objecto-livro existem numa sequência que é algo mais do que uma sucessão de fotografias: a escolha e a ordenação das imagens impressas resultam de uma montagem controlada pelo autor e é esta que estabelece o ritmo e o sentido, ou a suspensão do sentido, de um discurso (um discurso visual). Mas a sequência nunca é só uma fórmula fácil para compensar a gratuitidade de cada imagem individualmente considerada.
Tal como nas outras produções de Augusto Alves da Silva — um jovem fotógrafo de 31 anos com uma obra reconhecida desde 1990 (individual na Ether, «Algés-Trafaria»; Europália 91, etc) —, tanto ou mais que a imagem isolada, é a série que lhe interessa. O momento já não é decisivo para estruturar numa unidade formal os significados em presença, porque é preciso desconfiar da verdade congelada no documento e da ilusória transparência da realidade fotografada. E a aparente desordem das imagens de ist, que não segue um itinerário topográfico nem cronológico, por hipótese acompanhando o crescimento dos novos edifícios do Técnico, torna de imediato visível que o seu autor faz da sequência um uso caoticamente calculado.
Aqui, o ritmo é construído pela variação dos formatos das imagens impressas, pela alternância das fotografias centradas entre as margens brancas, ou ocupando a página toda, ou, mais raramente, distribuindo-se pelas duas páginas do mesmo plano, cortadas numa estreita faixa horizontal; e, também, pela criação de pares de imagens que dialogam por oposição ou continuidade, pela recorrência de um mesmo tema, ou tempo, com o intervalo de várias páginas, pela duplicação de imagens só aparentemente iguais; pela variabilidade da distância a que são vistos os objectos fotografados, pela diversidade das iluminações (a luz solar regularmente distribuída, sem contrastes fortes desenhados pela sombra, e também o flash usado com luz diurna, cenografando espaços e personagens); pela surpresa de alguns assuntos inesperados e pelo humor que interrompe a neutralidade da observação documental. E, em especial, por uma variação de estilos fotográficos adoptados no interior de um soberano exercício de autoria de um mesmo olhar, capaz de armadilhar, nas suas diferenças imprevistas, a espectativa do reconhecimento preguiçoso de uma assinatura fixada sobre uma fórmula ou tique técnico. Professores que ensinam, alunos que entram e saiem, estudam, namoram e fazem desporto, operários que trabalham, salas de aulas, secretarias, estaleiros, um infantário, uma piscina, edifícios dos anos 30 que se restauram, que se transformam com tecnologias do presente, que ganham a vizinhança de novas construções, exames, praxes, foguetes no dia da formatura. Imagens que asseguram a descrição de um microcosmos e outras que se furtam a uma justificação evidente; emblemas, lugares possivelmente anódinos e restos. Imagens dentro das imagens (num mesmo plano, o ecrã da televisão e a gravura kitsch), textos dentro das imagens (traduzidos para inglês, no final). «Pessoas que sabem que estão a ser fotografadas, que não sabem, que nos olham, que olham para o que estão a fazer, que nada fazem, reconhecíveis ou não. O fotógrafo visível e invisível. Ver e ser visto», anota A.A.S. Composições rigorosamente equilibradas ou cortes bruscos sobre corpos em movimento, imagens que poderiamos ver em qualquer competente publicação comercial ou que sugerem o carácter imediato da reportagem, e também fotografias que se dirão gratuitas ou que se pretendem «artísticas», fotos de amador ou referências eruditas à história da fotografia, «pós-fotografias» conceptuais ou a sua citação paródica. «Imagens perversas, inocentes, voyeurísticas, ingénuas», acrescenta o autor.
Nas fotografias de ist — «a paginação é crucial», insiste —, a arbitrariedade aparente das opções (um plano aproximado de um cabelo de mulher ao lado de uma imagem de escritório que lembra um trabalho emblemático de Victor Burgin — Office at Night, nº1 — refotografado à maneira de Martin Parr; dois planos gerais da construção da torre de Electricidade, exactamente iguais excepto se descobrirmos as manobras amorosas de um casal minúsculo nas escadas da Alameda) é permanentemente acentuada como a manifestação de uma ambiguidade que sempre acompanha a «objectividade» do olhar fotográfico.
A mesma recusa de que o poder descritivo da fotografia, a sua imediata natureza icónica, permita confundir a realidade com a sua representação leva-o a abdicar das legendas das suas fotografias e de todos os sistemas de indexação ou catalogação, contrariando o seu uso como significados unívocos. E até a rejeitar a numeração das páginas, impedindo que qualquer imagem se possa referir isoladamente, excepto por uma precária tentativa de descrição, como se faz com uma cena de um filme.
AUTORIA E ESTILO
Através das suas exposições anteriores, A.A.S. definiu um olhar fotográfico marcado por um rigor de observação que se diria demasiado exacto na sua fria objectividade: uma composição frontal e distanciada, tendencialmente simétrica e centrada por uma linha média de horizonte, sob uma luz uniforme e com a sua absoluta nitidez igualmente distribuída pelo assunto e pelos pormenores parasitas que o diluem numa aparente não-escolha. Nesse excesso de neutralidade não-pictural e inexpressiva, onde se suspendem as marcas habituais da «vontade de arte», como a recusa de um estilo pessoal — que é, em si mesmo, uma fortíssima marca autoral —, as imagens são tão transparentes que parecem encenadas. O mínimo de presença do fotógrafo era já a evidência de um trabalho construtivo da realidade fotografada, e a máxima denegação da autoria identificava a consciência da inevitável manipulação das imagens.
Neste trabalho mais amplo e mais livre, é já outra, ou mais complexa, a atitude do fotógrafo. Agora, a itinerância pelos estilos demonstra-os como «escolhas conscientes e como forma de negar a ideia ou a obrigação de que um fotógrafo tem um estilo — são técnicas que se podem aprender e manipular».
Diz ainda o autor, um fotógrafo que pensa:
«Um dos aspectos que mais me preocupa na fotografia é a variedade de estilos com que se pode trabalhar e o modo como um determinado estilo afecta a percepção de quem vê o objecto fotografado, quase sempre confundido com a sua própria representação. ist é uma série em que procuro lidar com as dúvidas e receios que tenho dessa representação». Não se tratará, assim, de um exercício de nomadismo através de estilos e de citações, vulgar em produções que fazem da «apropriação» uma prática dita desconstrutiva que se compraz na sua incapacidade de invenção ou no académico auto-questionamento do «medium», convencionalmente identificadas como artísticas apesar, quase sempre, do seu efectivo desinteresse visual — observem-se, em Lisboa, as actuais exposições de Thomas Joshua Cooper e James Welling. A citação de anteriores linguagens, a ampliação dos formatos, o complemento das molduras, as legendas expostas, as provas únicas são, regra geral, processos escolares de um mesmo estilo colectivo que transferiu o esvaziamento de emoção e de sentido para o terreno dos objectos de arte, sobre a ténue eficácia de protocolos de legitimação ou de currículos de galerias famosas.
Formado em Londres numa escola e num tempo dominados pelo neoconceptualismo, A.A.S. tem mantido uma distância voluntária dessa circulação da fotografia no interior do espaço genérico da «arte contemporânea», embora tenha participado na exposição «Depois de Amanhã», no CCB.
Mas ele também não é daqueles fotógrafos permanentemente acompanhados da sua câmara, que vão surpreendendo os acasos ou acidentes, sempre disponíveis para captar o possível fluxo da vida em instantes de síntese. O seu trabalho, feito com uma máquina de médio formato (6x7 cm), estabelece-se a partir de um projecto reflectido («há uma ideia à partida», diz), conceptualmente programado pela investigação do tema a abordar e pela interrogação sobre o que é a especificidade da fotografia.
Enquanto fotógrafo, A.A.S. recusa a distinção entre o trabalho comercial, de encomenda, e o trabalho de autor, contrariando o usual desdobramento entre duas carreiras divorciadas — e quase toda a história da fotografia é feita dessa mesma recusa. É ao executar um trabalho por natureza documental, competente e inventivo enquanto tal, e gratificante na sua relação com o espectador, que ele também estabelece, se o quisermos ver como algo mais de que um livro «sobre» o Técnico, as condições de uma interrogação actual sobre a fotografia, identificando a descrição e a encenação da realidade numa operação que a todo o momento acompanha a informação com a afirmação da sua própria ambiguidade.
E este é um trabalho que pôde contar com excepcionais condições de produção, asseguradas pelo IST com um vasto leque de patrocínios: em primeiro lugar, pela liberdade de que o fotógrafo usufruiu para conceber um projecto e para o levar à prática ao longo de cerca de ano e meio (de Fevereiro de 93 a Julho de 94), depois, pela independência que gozou para estruturar um livro pessoal, obviamente distanciado da lógica usual do documentário e da homenagem.
Ao incidir sobre a transformação e expansão do Técnico, esta encomenda não nasceu inocentemente alheia às polémicas levantadas em torno dos projectos arquitectónicos que adaptam ao presente o antigo IST de Pardal Monteiro. Um debate que, em geral, se desenrola sem consideração dos argumentos que justificam a modernização das antigas instalações — os mil alunos iniciais são hoje quase dez mil —, das possíveis alternativas em presença e da apreciação directa dos seus resultados práticos, em termos de qualidade de integração arquitectónica e de qualidade de vida assegurada. Augusto Alves da Silva não ilustra uma tese e não toma partido (melhor, toma o partido de pôr em causa a crença na eficácia da documentação fotográfica): poderia dizer-se, até, que subverte a encomenda, se esta não tivesse inscrita à partida a sua liberdade de criação. Ao mesmo tempo, ele dá-nos a ver o que muda no IST (fatalidade da fotografia) e alerta-nos a todo o momento que vemos as suas imagens através de uma codificação aprendida da realidade.
No final, o plano geral da nova Torre de Electricidade, já concluída, mostra-nos, entre uma cortina de árvores (a «natureza» preservada), o cubo negro pousado levemente sobre o edifício pré-existente (o património conservado) — onde se terão criado novas condições de trabalho escolar tão certas com o tempo como as do antigo Técnico. Tal como sucedeu quando a vi pela primeira vez, «ao vivo», a sua presença recorda-me as emoções de 2001, Odisseia no Espaço.
Na página seguinte, uma bola amarela, destacada pelo flash, ocupa o lugar central de uma superfície negro-azulada que será certamente a água da piscina — porquê, para quê? «Afinal, o que tudo isto quer dizer?», insiste Augusto Alves da Silva.
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