A década mais revista ou revisitada (e mais reeditada) é sem dúvida a dos anos 70, que agora preenche as naves do CAM - ele próprio um "espaço" dos anos 70 inaugurado em 1983, espécie de armazém branco ou fábrica que se diz ser polivalente, aberto e modulável para vários usos, mais destinado a eventos e "instalações" - ou ao vazio - do que a ser galeria de exposições (ou museu, que horror); por mais alterações que internamente se adaptem não encontrou até agora solução estimável - talvez a Gae Aulenti que se defrontou em 82/85 com o Centro Pompidou-Beaubourg, vindo de 1972-77... A cedência a pressões ditas paisagísticas, disfarçando-o no jardim, ainda afectou mais o projecto de arquitectura, numa contraposição violenta com o exemplo moderno da velha sede dos anos 60.
As décadas não são todas iguais, quanto à avaliação de resultados e contextos; e não são sempre um progresso face à anterior, pelo contrário neste caso.
António Costa Pinheiro, Citymobil, 1967-1968 (Projecto: modelos em cartão pintado; películas de cor, madeira, elementos metálicos) Colecção do artista. Tratava-se então (circa 68) de trocar a pintura pela intervenção na cidade, juntando a perspectiva utópica ao destino lúdico. O objecto exposto (instalação de modelos ou maquetes) visava a sua construção no espaço urbano e não no museu: a "experimentação" não se encerrava aqui no espaço fechado da arte. Esta é uma das peças mais radicais da mostra.
Há um ano, Setembro 2008, mostraram-se em Algés os anos 70 da colecção Manuel de Brito, que foi um protagonista da década do lado do mercado galerístico (ver adiante). Agora, no CAM, volta a mostrar-se a década pelo lado do mercado institucional, que alguns julgam erradamente ser um anti-mercado, mas é o mais arbitrário e manipulável dos mercados, aquele onde mais cegamente se depende do atestado académico ou da retórica crítica, prescindindo do exame visual e do juízo de valor, aquele onde mais se cede à facilidade da reedição, da reconstrução e multiplicação das obras (o readymade só passou a fazer história comum quando Duchamp em 1964 os repetiu como múltiplos de edição limitada, num imprevisto e sábio negócio de relíquias, mas ele era um humorista e desenvolvia então a sua obra última em segredo).
João Cutileiro, Verão, 1972, Fotografia a p/b (Col. particular) Uma obra inédita até 2008, descoberta num leilão monográfico da P4 dedicado a uma pequena parte da produção fotográfica de Cutileiro. Mas a surpresa não pode justificar a ausência do escultor
A mostra de agora (se comparada com a de Algés) é ou segue a versão oficial da década (política e "experimentação"): é a sua versão institucional (o que a Gulbenkian subsidiou e coleccionou; o que a SEC patrocinou ou promoveu, mas cooptando algumas singularidades periféricas que alargam o núcleo central restrito), e é a sua versão académica, isto é, a lição escolar daquela. Esta é a década da reestruturação da AICA (desde 1969; com a Colóquio Artes desde 1971; com os salões da SNBA) e a década da institucionalização da "vanguarda", a primeira em que a arte oficial passa a concidir com "as vanguardas", e estas com a arte oficial (com António Ferro a coisa foi um pouco mais complexa). Em Portugal, com a brusca transição política, quase tudo se passa a partir ou em torno do poder - Gulbenkian, SEC e Galeria de Belém, até à consolidação de um poder central e eficaz: Eduardo Prado Coelho/Ernesto de Sousa/Alternativa Zero e o grupo Calhau/Sarmento, etc, que faz a LIS e a seguir iria fazer o Depois do Modernismo, também a partir do poder, cavalgando já a nova década. Outras movimentações de "vanguarda" são menos história, por se passarem longe do centro e contra ele, e por estarem associados a personagens não canonizáveis, em especial Jaime Isidoro e Egídio Álvaro.
Teria sido oportuno
1 - ver o que se passou pelos lados da "Dinamização Cultural", com conflito de diferentes militâncias tentando fazer arte e política no terreno (pág. 28 do cat.);
2 - averiguar a história e o contexto da proibição da 1ª grande representação artística a levar ao exterior (1975; reorganizada em 1976) - ver nota 7 da pág. 31. Mais tarde, o episódio "Portuguese art since 1910" (Londres 1978 com Hellmut Wohl) baliza outro confronto de olhares e de poderes (com JAF);
3 - estudar a lógica das novas presenças nas bienais internacionais, que tinha sido sempre uma zona de conflitos políticos, regionais e geracionais - direita/esquerda e "neutros"; oficiais/modernos, Lisboa/Porto, etc - desde 1974 e São Paulo, 1976 e Veneza - até Paris 1980 com a auto-representação dos artistas da SEC Sarmento e Calhau (mais Leonel), e Cerveira Pinto em 82;
4 - balizar e interpretar o processo de centralização e oficialização de poderes, que foi enfrentando as periferas dos Encontros Internacionais de Arte, Valadares 1974 - Caldas 78, e Bienal de Cerveira, dd 78. (ver pág. 27: "...marcados pela liderança de Egídio Álvaro, pouco dialogante com o meio crítico, sobretudo lisboeta." RHS) Ou desde Vigo e Óbidos em 1970.
A mostra de Algés foi uma antologia (sem catálogo) quase sempre de pintura e de continuidades de carreiras, com alguns poucos inícios e nenhuns casos conceptualistas e instalativos, até porque a acumulação fez-se de obras e não de restos ou de projectos e documentos de uma qualquer cronologia local. Da escolha feita ao longo do tempo resultou uma história discutível mas coerente, uma história pessoal. Ter um pouco de tudo é não escolher, conciliar o inconciliável, impedir o escrutínio de uma recepção acrítica.
A respectiva informação assinalava tanto a viragem política do país como o inicial crescimento do mercado coleccionista (até à crise do petróleo de 73 que antecedeu o 25 de Abril), mas afirma a seguir e com frontal determinação: "em Portugal nada de muito importante se passa nesta década". (A presente exposição confirma-o, e não podia ser de outro modo) Uma segunda exposição coincidente no CAMB era então dedicada a António Dacosta, que na segunda metade da mesma década recomeçava confidencialmente a pintar - o que torna possível dizer que esse é dos mais importantes factos dos anos 70 - e houve poucos factos. A actual retrospectiva ignora-o, tal como ignora que Menez fez nesses anos obras marcantes - são opções que demarcam (deviam demarcar) campos hostis. Deixa-se o melhor de fora, por questão de gosto e opção estratégica, ou de concorrência entre mercados (e o mercado institucional vai sendo o mais carecido de meios para jogar no tabuleiros das obras, prefere "experiências", mesmo que elas não cheguem a lado nenhum, e vale-se dos "restos" reciclados).
Muitas outras vezes se viram em anos recentes os anos 70, e essa foi certamente a primeira década a tomar-se como tema diferenciado, afirmando-se como cronologia e já não como programa ou estilo. Refiro a antologia itinerante "70-80 Arte Portuguesa", organização da SEC para o MNE com comissariado de Sommer Ribeiro mais R.M.Gonçalves, Calhau e Margarida Veiga, em 1987. Predominavam os 80, pelo número de obras e pelo critério selectivo.
Os anos 70 apareceram a seguir na inauguração do Museu de Serralves ("Circa 68"), em 99, e já na rememoração da "Alternativa Zero", de 97, e depois numa reconsideração portuense dos anos 60/70, em 2001 (cumprindo diálogos diplomáticos entre Serralves & a Árvore), que foi de grande importância para conhecer o que se passava a Norte e o papel "vanguardista" de Jaime Isidoro - artista e galerista do Porto, animador de diversas iniciativas a partir da Casa da Carruagem, em Valadares, e com Egídio Álvaro. Muitas obras esquecidas se relembraram e reconstruiram para aquelas ocasiões, regressando depois ao limbo das cronologias. Há sempre razões para terem sido esquecidas e destruídas, tal como para a sua posterior reciclagem. A retrospectiva histórica deveria ser primeiro construída por escrito e ilustrada, antes de passar a exposição quando tal se justificasse, mas as galerias públicas têm de fazer exposições e uma especial voracidade por restos (está tudo ligado).
A actual retrospectiva sucede à abertura comemorativa dos arquivos da Gulbenkian, revendo bolsas e bolseiros desde 1957, "50 anos de arte portuguesa", em 2007. Faltou agora encontrar um outro nítido tema de investigação histórica e pesquisa documental, que poderia resultar da conjunção entre a mutação política do país (que atingiu a Gulbenkian quase até à ruptura, ou à "nacionalização") e a política seguida nos domínios dos subsídios a artistas e/ou a projectos, das bolsas, das exposições próprias, das relações internacionais (estrangeiros e exilados). Teria a vantagem de continuar a libertar memórias e documentação, fazendo história da casa e do país.
O projecto evoluiu de uma inicial ambição internacional para uma escala menor e certamente vaga. Duas grandes áreas temáticas se indicam como fio condutor: "a necessidade de intervir" (arte e política, portanto) e "Experimentar: série e variação", tópico que se dissocia do primeiro para valorizar abordagens autocentradas da arte sobre ela mesma, processuais e formalistas - o "experimentalismo" (apropriado da ciência) como uma atitude que em arte se funda em si mesmo (arte sobre arte) e se esquiva a todos os critérios de avaliação crítica (a experiência produz resultados, confirma ou infirma hipóteses - em arte a experiência vale como experiência). Literatura anexa diz ser "a década de 70 uma época particularmente fecunda para a história da cultura e das artes visuais em Portugal <é um equívoco>, marcada por uma fortíssima carga política inspirada pela Revolução do 25 de Abril de 1974 e pela vivência dos primeiros anos de democracia", o que é do domínio da boa vontade "revolucionária", desmentida pelo curso da "revolução" que nas artes não houve. Outra pista pretende somar "a assunção de uma ideologia de experimentação (estética, plástica, formal), uma enorme variedade de orientações (materiais e plásticas) e linguagens, desde as tradicionais pintura e escultura, até à performance, à instalação, bem como à consagração da fotografia e da imagem em movimento." Corre-se assim o risco da indistinção, sob um pluralismo esvaziado de utopias e de fronteiras ("atravessar fronteiras").
O passar do tempo, o recuo da História, a compressão crescente dos ritmos de mudança conduzem ao justo esquecimento muitas das obras que num momento ou outro quiseram apresentar-se como inovadoras e radicais, ou experimentais. O mercado institucional das revisões históricas interessa-se em contrariar aquela dinâmica de selecção e limpeza, ampliando a oferta dos materiais de que se alimenta, transmutando documentos e ilustrações em obras (de arte), itens cronológicos em datas (da Históra), experiências em descobertas. Mais museus e mais exposições requerem mais objectos de exposição, e em especial maiores objectos (como no CAM se prova), acrescentando à "ideologia de experimentação" a "ideologia" da redescoberta, ou a ideologia da reabilitação das obras esquecidas ou menosprezadas. É um esforço inútil, mas de que se alimenta o mercado institucional e a ordem académica. O mérito que certas acções poderiam ter enquanto factos datados dilui-se ao passar-se de facto a objecto e ao acrescentar-se a impossível reactualidade de uma segunda data. Sem esquecimento a memória seria impossível.
Para quem não comunga de algumas reverenciais admirações que as novas academias escolares procuram balizar-banalizar, as grandes reconstruções do átrio tornam-no inóspito. Mas deixou de ser regra questionar as obras expostas - se estão no museu devem ver-se com reverência, todas. Dizia Harald Szeemann, primeiro e o mais influente dos grandes comisários, já em 1991: «Hoje é possível ver a história dessa arte com recuo: a rebelião silenciosa e as primeiras manifestações, de 1966 a 1969, o estilo em 1971, a moda em 1973» (L'Art de L'Exposition, Ed. du Regard, 1998). Mas o discurso dominante deixou de distinguir, e tudo se equivale. Fui-me repetindo em várias ocasiões sobre a menoridade dos experimentalismos dos anos 70, quase sempre usados em 2ª mão e sem destino fora da instituição arte. Sem êxito, é claro. Mantenho a recusa, mesmo que isolada. (Nos anos 70 quase deixei de visitar exposições e procurava fazer política; voltei às galerias na década seguinte - é só uma nota pessoal)
Caro Alexandre
Além dos gostos pessoais que não devem ser discutidos, gostaria de ter visto mais que análise do que efectivamente está em exposição. Nenhum obra lhe merece mais do que desleixado azedume?
Por outro lado: não é muito didáctico comparar a exposição do CAMB em Algés com esta...
E ainda: os pequenos factos que sugere que deviam ser tratados, são-no no catálogo abrindo pistas para investigação eminentemente historiográfica que não pode ser uma exposição. Mas as pistas estão tb. na exposição: as entrevistas com os críticos, as revistas, as perfomances de Espiga Pinto.
Finalmente: que excessiva subjectividade de considerar o regresso à pintura de Dacosta o grande facto da década!!!
Raquel
Posted by: Raquel Henriques da Silva | 10/14/2009 at 08:02
Caro Alexandre,
Em definitivo: entre nós, para a crítica e a historiografia, o paradigma que define artisticamente a década é a "Alternativa Zero" (1977).
Percorro a exposição “Anos 70 – Atravessar Fronteiras” e vejo-a como um reflexo disso e apenas como parte daquilo que a década foi. E o que é que ela foi ?
Foi uma década que, no essencial, deve ser analisada como um prolongamento da anterior. Esta exposição confirma isso ao incluir 24 dos 27 artistas reunidos em 1994, por António Rodrigues para a exposição Anos 60 – Anos de Ruptura”
Agora, mesmo sabendo as limitações orçamentais que determinaram correcções ao plano inicial de abordagem da década e que obrigaram a deixar de fora a componente internacional inicialmente prevista, aliadas ao facto de uma parte muito significativa da exposição ser constituída por obras pertencentes às reservas do CAMJAP, há ausências difíceis de explicar (Menez, Ruy Leitão, Escada…), sobretudo tendo em consideração a visão abrangente que se procurou dar.
E que dizer de, assumindo a "Alternativa Zero" como paradigma da década, chamar para a comentar José-Augusto França e Rui Mário Gonçalves...?
Se são importantes, tendo em consideração a sua actividade na década, falta lá muito do que defenderam e da visão que, através dessa defesa, podemos ter dela.
Mas, tendo eu vivido a década sem nunca me afastar muito daquilo que foi a realidade artística, apesar de tudo ao percorrer a exposição senti-me transportado no tempo... e depois a década é difícil para a arte em Portugal.Como muito bem sabes a urgência era outra!
Posted by: António Bacalhau | 10/14/2009 at 11:00
5 estrelas da Luisa Soares de Oliveira (Público, 16); 4 do Celso Martins e 3 do José Luís Porfírio (no Expresso, 17). Eu daria 2 - gosto destas (des)classificações ou notas que traduzem abordagens divergentes (são os gostos que se discutem, e confrontam-se as informações...). E agradeço as colaborações aqui chegadas. De facto, tenho uma má relação com os anos 70 que se tornaram "canónicos" (como diz o Celso)... Mais estilos que autores, sempre disponíveis para reaparecer duas décadas mais tarde. Modas dirão outros (por exemplo, Szeemann, que sabia de que falava, e gostava de ser imprevisível).
Entretanto, noto que o subtítulo terá sido tomado a Manuel Baptista e ao seu "Atravessar Fronteiras", de 1976 ("Paisagem", aí escrito, tb rima com o 1º e anterior sub-núcleo, algo incompreensível no contexto, e onde não se lembra o indispensável João Hogan, pintor e gravador). Os dois quadros de M.B. são pontos altos da mostra e é pena que não se aproximassem dos dois de Fátima Vaz, não por acaso outra presença certa - o núcleo "textil" continua com Helena Lapas e Isabel Laginhas pelo lado da tapeçaria, e perde-se com o A de João Vieira, vindo de outro campeonato. Seria oportuno o patchwork da Fátima e da Helena exposto em 83 na Altamira.
E o Henrique Manuel é bem lembrado pelo Porfírio: vou pôr um desenho possível.
Posted by: ap | 10/18/2009 at 20:29
A Luísa Soares de Oliveira que me desculpe, mas é uma mãos largas. Nem a exposição nem o catálogo merecem nota máxima.
...E põe lá o desenho do Henrique Manuel, um daqueles mais inconvenientes!
Posted by: António Bacalhau | 10/19/2009 at 19:45