É uma exposição extraordinária (uma exposição insólita, uma exposição única) a que a CML apresenta agora no Páteo da Galé à Praça do Comércio ou Terreiro do Paço (?) revelando outra secção das Colecções Berardo - esta dedicada a objectos artísticos (em sentido lato) de origem africana (ou de inspiração africana: já haverá fabrico chinês de "arte africana"?). Peças arqueológicas (cerâmica tumular do Niger), a "secção etnográfica" com diversíssima produção dispersa vinda do mercado da especialidade (melhor ou pior, mais ou menos antiga ou recente, "autêntica" ou produzida para o mercado "etnográfico" - não sou especialista na matéria, mas vejo umas montras e visito a FIL Artesanato, por exemplo), mais a "secção contemporânea", precedida pelo guineense Cherno T. Camará, e o maconde moçambicano Atanásio Binamu, em marfim, entre outros autores macondes de madeiras esculpidas, e preenchida de facto com a escultura em pedra "Shona" do Zimbabwe, que era a mais antiga secção africana das Colecções Berardo - o resto é de aquisição recente e por grosso.
Além da "Alma africana", vêm sempre outros restos, os ossos e sangue (embora as peças "antigas" tenham lavagens recentes). O corpo africano está ausente, pela periferia de Lisboa e nas metrópoles africanas. Continuamos a ignorá-lo.
Extraordinária, disse, não por ser uma boa exposição (segundo os meus critérios de qualidade, claro), mas por ser um detonador de questões, um concentrado densíssimo de temas, indícios, problemas. Uma exposição surpreendente - ou inclassificável - mas utilíssima por isso mesmo. Imperdível, como agora se diz, quando a oferta é tão vasta e diversificada que cada um, obviamente, a vai perder quase toda. Valeria a pena tentar desenredar o(s) novelo(s) desta exposição-evento.
fotos cml. em baixo, esculturas em pedra do Zimbabwe
Ali se pode reflectir sobre o originalíssimo coleccionismo do comendador Berardo, que além da arte moderna e contemporânea apresentada no Museu com o seu nome, no CCB (de que sou há muito admirador fiel), se tem multiplicado (dispersado) por muitas outras colecções, que podem incluir flores e pedras, cerâmicas, guerreiros chineses, pintura da América Latina, esculturas públicas de grande formato, peças de Art Déco, e, entre outras, a arte e a arqueologia e o artesanato africanos que agora se mostram. Não temos nada com isso - a não ser quando ele o mostra, e nos desafia assim a termos uma opinião, e logo a partilhá-la, ou a passar dela, opinião ou palpite, para um propósito de sugestão, conselho ou parecer. Aquela dispersão pode satisfazer uma compulsão, que nos merece todo o respeito, psicologicamente, mas não seria possível passar delas - dispersão e compulsão - para algo mais colectivamente útil? Mas ele também tem razão em querer pensar pela cabeça própria e desconfiar dos assessores que por aí pululam (poluem). Quanto à heterogeneidade da colecção - arqueologia, mercadoria etnográfica e produção actual/tradicional de exportação, assinada ou não - esse é outro tópico a analisar, assinalando-se desde já que é corajoso juntar tudo no mesmo saco, deixando à mostra a realidade toda deste mercado agora póscolonial.
Outro feixe de questões tem a ver com a CML, a meritória vitória eleitoral do presidente Costa e os processos político-culturais-mediáticos com que se ganham eleições: aquilo é em primeiro lugar política. Outro núcleo tem a ver com a Praça do Comércio, as suas obras intermináveis, o urbanismo e a "animação" da cidade, e com o destino da Praça e os planos para ele, debatidos ou por debater. Também com as opções culturais da CML/presidência Costa e as intervenções ou poderes relativos da ex-vereadora Rosalia Vargas, do assessor (presidencial) Pedro Portugal (o artista), da ex-vereadora Manuela Júdice (Cidadãos por Lisboa, sem pelouro mas responsável por certos projectos camarários, mediante o acordo de 9 de Set. de 2008 que levou a arq. Roseta à lista eleitoral e à actual maioria) e ainda do pp presidente e dos seus próximos.
A seguir poderia pensar-se o que foi o projecto "Lisboa, encruzilhada de mundos" e esta série (em princípio periférica ao projecto) de três exposições africanas no Terreiro do Paço; o que significam os temas do multiculturalismo, da interculturalidade ou do "diálogo de culturas" e do pós-colonialismo, entre outros, diferentemente analisáveis nos terrenos da cultura e da arte, da antropologia, das políticas urbanas, da cooperação internacional e da intervenção geo-estretégica, etc; o que por aí há de projectos culturais da CML, de equipamentos e promessas, incluindo as que se apresentam em capítulos relativos às "Políticas de apoio à diversidade e às minorias" (como os projectos dos Museus da Comunidade Judaica, da Cidade Islâmica e do Africa.Cont). O ciclo africanista do Páteo da Galé contou antes com as colecções de Eduardo Nery e José de Guimarães e a seguir vem aí a arte africana contemporânea do prof. Fernandes Dias, segundo anunciou o Presidente Costa: a próxima exposição neste local "já não de arte africana tradicional mas de arte contemporânea", prenúncio do que poderá vir a ser o futuro Centro Cultural de Arte Contemporânes África.cont, em cujas actividades se insere. (inf. CML)
Caro Alexandre Pomar,
Li o seu comentário sobre a exposição Berardo no Páteo da Galé. Quase 100% daquilo que está designado por Arte Etnográfica, a que eu teria preferido chamar Arte Tribal Africana, foi coleccionada por mim em África entre 1965 e 2002. Todas as peças são "genuinas", no sentido em que foram produzidas por artistas ou artesãos africanos, embora parte delas nunca tenham sido usadas em ritos tradicionais. Eu só teria exibido cerca de 300 peças das 659 que vendi ao Com. Berardo, mas foi outro o entendimento dos organizadores. Pena que não tenham incluido no Catálogo elementos fulcrais do meu Inventário com extensas referências bibliográficas e ressalvas. Quanto às peças de marfim, que eu não teria exposto, o Atanásio Binamú era apenas um jovem e promissor escultor entre os mestres da Cooperativa de refugiados Macondes na Beira em 1985.
Melhores cumprimentos, CPH
Posted by: Carlos Picado Horta | 11/10/2009 at 22:18