Uma das marcas dos jornais de agora é a falta de memória, o que pode significar primeiro carência de memória colectiva, depois de memória especializada dos responsáveis sectoriais e dos redactores de serviço (a regra tornou-se a mutabilidade constante das pessoas, do desporto para o internacional, etc., só para instabilizar a hierarquia dependente - "flexibilidade" é outra coisa), e por fim falta de recurso aos arquivos. Seria curioso verificar o encerramento dos arquivos na passagem do papel ao digital (a destruição ou inacessibilidade das bibliotecas, dos arquivos documentais, dos acervos fotográficos em película ou papel), ou a externalização (?!) dos centros documentais, transformados em empresas associadas nos melhores casos. O que não é consultável na rede interna ou no Google deixou de procurar-se.
Sobre este pequeno caso Paula Rego vs Dalila Rodrigues (ou vice-versa), os jornais publicam e repetem uma notícia sintetizada em duas linhas e umas frases soltas vagamente justificativas oriundas de uma vereadora da Câmara de Cascais e vice-presidente da Fundação PR. Para os numerosos comentadores (o público atento) é o bastante para poderem dizer não importa o quê, na confortável situação de ter-se tanto mais opinião quanto menos se sabe sobre um qualquer assunto. Uma vez que em matéria de arte contemporânea impera (ou parece) o não importa o quê (*), a adequação da atitude dos comentadores à matéria em causa é evidente - não existe.
Se os jornais tivessem memória e/ou exercitassem a busca de argumentos poderiam manifestar algum interesse a respeito da instituição da Fundação Paula Rego a poucos dias da inauguração da Casa das Histórias (Diário da República de 4 de Setembro, entrada em vigor no dia imediato, inauguração a 18; mas com aprovação em Conselho de Ministros de 1 de Julho).Tanto mais que a mesma não foi então divulgada com o relevo merecido (fez parte do sumário de diplomas aprovados naquele conselho). Em termos jornalísticos era relevante noticiar a associação do Estado e também de John Erle-Drax, nominalmente designado (é um dos funcionários ou directores de serviços da Galeria Marlborough, Londres), ao que era antes um acordo firmado apenas entre a pintora e a Câmara de Cascais. Como diz o Decreto-Lei 213/2009 o Governo promoveu a constituição da Fundação PR - e adiante: "Foi ouvido o Município de Cascais".
Os quatro fundadores que integram o conselho de administração que tem competência para nomear o director são portanto a artista, o Estado Português, o Município de Cascais e John Erle-Drax. Não nomearam. Já agora era curial saber-se quem representou o Estado (designado por despacho do ministro da Cultura publicado no Diário da República - a consultar, portanto...). E o Estado ponderou o seu interesse ou seguiu a artista (se as duas hipóteses são dissociáveis)?
Recuando mais, encontram-se registos de o presidente da Câmara António Capucho e a pintora terem formalizado "a assinatura do contrato de Doação e Comodato das obras que integram o espólio da futura Casa das Histórias e Desenhos Paula Rego" a 17 de Agosto de 2006. O contrato diz respeito à doação e empréstimo de obras a troco da "implementação" de um projecto museológico num edifício de que existia já uma proposta arquitectónica apresentada por Souto Moura (valor estimado 5,300 milhões de euros; abertura ao público no prazo máximo de 42 meses, Fev. 2010: ambos os limites não foram atingidos!!).
Nas suas disposições, o documento admitia já a possibilidade de criação de uma fundação e a cedência, a seu favor, da posição contratual da Câmara, na condição desta integrar a nova entidade; e era totalmente omisso quanto à atribuição das responsabilidades pela direcção futura da Casa, embora os encargos de funcionamento, a manutenção do complexo museológico e a conservação das obras fossem assumidos pela Câmara de Cascais. Como continuam a ser nos Estatutos da Fundação.
Na sessão pública de assinatura do contrato foi divulgado que "o projecto de museografia da colecção da pintora (...) está a ser desenvolvido em colaboração com a Dra Mary Margaret Portes de Sousa (...) e com técnicos de Museografia e História da Arte pertencentes ao departamento de Cultura da CMC". Além das competências então atribuídas, a srª era/é amiga da pintora e mulher de Luís Amorim de Sousa, poeta, ex-adido cultural e autor de Londres e Companhia (Assírio & Alvim, 2004), que em 2005 apresentou na exposição "Memorabilia", no Centro Cultural de Cascais, a sua colecção de obras e documentos "londrinos" dos anos 60 e 70, e mais recentemente tem dado a conhecer a Colecção Alberto Lacerda que por este lhe foi confiada (Fundação Mário Soares e Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, 2009). A instalação destas colecções em Cascais tem sido considerada como possível e estabeleceria uma estreita relação de complementaridade e contextualização do Museu de Paula Rego, aberta para o panorama literário e artístico inglês daquelas décadas e para os exílios portugueses em Londres (Menez, Cutileiro, João Vieira, Jasmim, etc) ...
Depois desta primeira atribuição (efémera) de responsabilidades museográficas, Dalila Rodrigues veio a assumir a direcção pela instalação do Museu a partir de Outubro de 2008. Em termos informais (segundo se informa agora), e que seriam formalizados ou não na (1ª?) reunião do Conselho de Administração. Não foram. Ignora-se ainda se serão dadas justificações para a falta de consenso em torno de Dalila Rodrigues (divergências contratuais?, salariais?, relacionais?, de projecto?, etc). Segundo o Público, Dalila Rodrigues tinha criado uma equipa de cinco coordenadores, cuja continuidade em funções parece também posta em causa.
(*) Fica para outra oportunidade a questão do não importa o quê, em grande parte redutível ao tema do readymade (o jáfeito) com que Duchamp teria alargado o território da arte. Trata-se de sugerir que, pelo contrário, Duchamp não inventou o readymade, não abriu um novo género nem descobriu que tudo pode ser arte. Ele "apenas" constatou que muita coisa tinha passado a ser considerada arte e antes o não era - nomeadamente os ídolos, fetiches e manipanços dos "primitivos"; as produções gráficas das mentes "alteradas", vulgo loucos, originais e outsiders; as práticas naives, ingénuas e amadoras, antes e depois de Henri Rousseau, alfandegário; os desenhos das crianças, etc. O processo de integração e de reconhecimento como arte era então constante. Assim sendo, qualquer coisa proposta como arte o poderia ser. Feita a demonstração, Duchamp não continuou a explorar o filão e pelo contrário condenou quem o pretendeu seguir. Mais tarde, abandonado o xadrez de competição e dedicado à legítima esposa, lá consentiu em multiplicar uns quantos objectos e dedicou-se a um projecto de grande envolvimento construtivo que só se conheceu depois da sua morte. Duchamp fechou o campo do não importa o quê, mas alguns dos seus admiradores contrariaram-no. Uma das partes menos conhecidas da sua biografia e a que mais me importaria conhecer em detalhe é a carreira do negociante de arte, consultor, intermediário entre artistas e colecionadores, tendo demonstrado nessa actividade um gosto apurado e muita informação.
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