"Lisboa Encruzilhada de Mundos" no Terreiro do Paço? Que África é aquela que se expõe ao longo de todo um ano em nome do diálogo intercultural e da "Encruzilhada de Mundos"? A África da "arte negra", da "arte primitiva" ou da "arte tribal", da espoliação colonial e das recolhas etnográficas, do gabinete de curiosidades e do museu, da tradição do exotismo - o outro incompreendido e temido, selvagem ou atrasado, representado pelos seus antigos ídolos, fetiches e manipanços, mais as suas réplicas de exportação (e a integração destas últimas traz alguma frescura à exposição "Alma Africana").

Os africanos de hoje vivem ao nosso lado nos bairros antigos (na minha rua) e nas periferias da cidade, e passam pelo Terreiro do Paço a caminho dos barcos para a outra margem - como os brasileiros, ucranianos, romenos, paquistaneses, etc. Por vezes vêmo-los como novos lisboetas de parte inteira ("Lisboetas", de Sérgio Tréfaut), outras vezes, como agora, recalcamos esse presente e cultivamos fantasmas do passado - a coberto da arte (!).
Nenhuma dinâmica de Inclusão social e de afirmação da interculturalidade (antes dizia-se multiculturalismo) percorre o programa destas exposições que mostraram as colecções de Eduardo Nery, José de Guimarães e Joe Berardo - não é o presente das comunidade imigrantes ou de origem extra-europeia, e as suas culturas, que se revelam e promovem, mas as imagens arcaicas que ilustraram a sua diferença e menoridade, que construiram uma distância alimentada pela estranheza e o receio. Em vez de trocas e encontros de culturas, prometidos nos programas eleitorais, estamos perante a reposição acintosa das ideias do primitivo, do tribal e do exótico.
Tratou-se de "animar" um espaço urbano prometido a futuros usos colectivos, de envolver as barreiras das intermináveis obras com cartazes de programas ditos culturais. De multiplicar actividades em tempo de eleições. De facto usaram-se os mais discutíveis estereótipos àcerca do outro africano em nome do encontro entre iguais.
Se este "interesse" pelos africanos e as suas culturas veio repor em agenda todos os equívocos da exploração colonial e etnográfica, e os respectivos argumentos ideológicos, é também a possibilidade de um relacionamento produtivo com os países africanos de hoje, e em especial, com os de passado colonial português, que constituiriam um espaço geo-estratégico natural ou potencial, que com estes programas se desperdiça ou afecta. Aquela "Alma Africana" (apesar da boa vontade ou da ingenuidade de Berardo, e da voragem do seu coleccionismo omnívoro) é a vários títulos um erro político. A arte africana e as outras artes não-europeias ( ditas tradicionais ou "autênticas" ) são do domínio do museu - e devem ser abordadas com precauções metodológicas, éticas e estéticas de bastante complexidade; não devem servir para a "animação" urbana. Se o museu (de Etnologia) não as expõe é outra questão a abordar.
De eleições sabem eles, mas haverá que construir alguma coisa depois da vitória.
Caro Alexandre,
confesso que tenho uma enorme admiração e fascínio estético pela arte tribal africana nomeadamente a dos objectos de fetiche e poder (Nkisi Nkondi, Mbumba Bwiti, Phungu, Byeri...). A meu ver estas 3 exposições foram de enorme qualidade quer pelas colecções apresentadas quer pela variedade das mesmas mas acima de tudo e principalmente pela oportunidade de poder ver estas peças numa exposição e não pelos exemplares que aparecem aqui e ali nos antiquários ou na feira de artesanato da Fil onde a qualidade e autenticidade deixa muito a desejar. Acho que devíamos aproveitar estas exposições para questionar o trabalho/existência do nosso Museu Etnográfico uma vez que a sua colecção se encontra guardada sendo apresentada temporariamente e não a tempo inteiro numa colecção permanente como acontece em todos os museus Etnográficos espalhados pelo mundo e esquecer um pouco o discurso politico com que você inicia o seu texto porque "interesses", "politiquices" e "animação" acho que não são as palavras certas, diga antes oportunidade, iniciativa e resposta a uma lacuna.
Posted by: Nuno Nunes-Ferreira | 11/09/2009 at 10:54