Arquivo EXPRESSO Revista 15 Set. 1990, pp. 83-84 (já não posso reconsiderar o lastro formalista da apresentação: a ideia do motivo como mero pretexto, a desrealização: a declaração do pintor: «O motivo é para mim uma coisa secundária, o que eu quero reproduzir é o que há entre o motivo e eu.» não pode ser interpretada como recusa do motivo, porque é a qualidade da sua presença e a relação "entre" que são essenciais)
Londres, O novo velho MonetA última das super-exposições de 1990 está em Londres, na Royal Academy: as séries pintadas por Monet na década de 1890 pela primeira vez reunidas (quase) como foram mostradas em vida do pintor. É a oportunidade para rever o lugar de Monet na génese da modernidade
VELASQUEZ, em Nova York e Madrid; Van Gogh, em Amsterdão; Monet, em Boston, Chicago e Londres. Operações diplomáticas triunfais, celebrações de centenários, gigantescas iniciativas de «sponsorização». As exposições marcam agora os calendários culturais e os itinerários turísticos.
As Meninas viajam de avião. Os recordes de entradas caem tão depressa como os dos preços dos leilões. Os bilhetes vendem-se com meses de antecedência e incluem-se nos programas das agências de viagens (como já sucedia, aliás, para Glyndebourne ou Salzburg). Os quadros vêem-se por entre filas compactas onde não se pode parar, ganhar distância, voltar atrás. A industria dos catálogos, «tee-shirts» e «gadjets» permite aos governos cortarem os orçamentos que antes atribuíam aos museus.
Monet agora inaugurado na Royal Academy é a última das grandes exposições de 1990. Foi organizada pelo Museum of Fine Arts de Boston, assinala os 150 anos do nascimento do pintor (14 de Novembro de 1840) e constitui uma iniciativa que só o apoio mecenático de uma grande multinacional (1,4 milhões de dólares oferecidos pela Digital, empresa líder mundial de sistemas e serviços informáticos) poderia permitir.
Em Boston, ultrapassou-se meio milhão de visitantes e as entradas esgotaram um mês antes do encerramento; em Londres, logo em Fevereiro, já se ia além dos seis mil bilhetes ao fim do primeiro mês de vendas antecipadas - «Monet vende-se tão depressa como a maior das 'pop stars'», proclamava a agência Keith Prowse. Na «Monet Shop», onde desemboca o percurso marcado aos visitantes, oferecem-se saquinhos com sementes das flores de Giverny e o livro de receitas da cozinha de Alice Hochedé-Monet. A empresa «sponsor» investe duas vezes a quantia citada em publicidade do acontecimento e promoção própria, informatiza a Royal Academy, convida jornalistas, oferece estadas em Londres aos seus melhores clientes de todo o mundo e estimula a dedicação dos respectivos funcionários trazendo-os também a testemunharem a boa aplicação do seu trabalho.
Reavaliar Monet
Mas a exposição Monet não é só mais um acontecimento no mundo vertiginoso das super-exposições. Esta não é apenas mais uma retrospectiva e, apesar do garantido êxito popular dos impressionistas em geral e de Monet em particular, trata-se até de uma exposição «difícil», porventura demasiado monótona para o espectador comum. É que as obras que se reuniram em Boston, Chicago e agora em Londres, sob o título «Monet in the '90s», são as de um momento particular da maturidade do pintor, os quadros das séries produzidas entre 1889 e 1900, quando Claude Monet passou a deter-se sobre um limitado e obsessivo leque de temas: nove dos 24 Vales do Creuse de 1889, 14 das 25 Medas de 1889 e 1890-91, 13 Álamos do vale do Epte de 1891, dez das 30 Catedrais de Rouen de 1892- 94, mais os campos de papoilas de 1890, as manhãs no Sena de 1897, o monte Koolas da Noruega de 1895, as vistas do Tamisa de 1899 e 90, a ponte japonesa de Giverny de 1899 e 1890, etc ...
O que é aqui determinante é a concentração sobre um período de viragem da obra de Monet, é a reconstituição das séries e a possibilidade de estas, pela primeira vez, serem outra vez vistas aproximadamente como foram pensadas e expostas pelo próprio pintor - ao contrário do que sempre sucede nas retrospectivas, onde elas se diluem no curso regular de uma carreira de 65 anos de trabalho. Paradoxalmente, trata-se de uma exposição que só os mecanismos da popularização tornaram possível, mas que deverá interessar sobretudo à revisão aprofundada de uma fase da obra de Monet que foi quase sempre avaliada com desconfiança por críticos e historiadores.
Acontece, por outro lado, que este parece ser, no quadro das mutações cíclicas de gostos e interesses, o momento propício para reconhecer a produção da maturidade de Monet (e já não apenas a ruptura impressionista das décadas de 60-70), o lugar que lhe cabe como um dos mais decisivos momentos de aprofundamento da pintura, isto é, para se poder ver, para além de equívocas divisões anteriores entre modernistas e tradicionalistas, um dos mais radicais exercícios de picturalidade.
A recentíssima publicação de um ensaio de Marcelin Pleynet sobre «Claude Monet et le naturalisme en peinture», incluído em Les Modernes et la Tradition (Gallimard, 1990), é o primeiro instrumento teórico dessa revisão que a actual exposição organizada por Paul Hayes Tucker vem ilustrar.
Uma obra demasiado extensa
Em 1890, com 50 anos, Monet inicia a instalação definitiva em Giverny, região rural na margem do rio Epte a 60 quilómetros de Paris. À compra da propriedade, que será a sua última residência até à morte em 1926, sucede-se a dedicação quase maníaca pela jardinagem, o alargamento do terreno para instalar um lago de plantas aquáticas que ele próprio considerará um dia como a sua maior obra-prima, e a lenta construção do motivo das suas pinturas dos últimos vinte anos, os Nenúfares (melhor, as Nymphaeas).
Depois dos anos de penúria, Monet começa a ser um pintor consagrado - 1889 é o ano de uma primeira retrospectiva, conjuntamente com Rodin, e de uma presença honrosa na representação oficial francesa na Exposição Universal de Paris - , passa a a gerir com zelo a subida constante do preço dos seus quadros e preocupa-se com os efeitos do excessivo êxito nos Estados Unidos.
As exposições impressionistas tinham terminado em 1886, com a aceitação generalizada da revolução iniciada 20 anos antes. Mas essa é também a data da dispersão do grupo impressionista, apesar dos jantares mensais que Monet promove no café Riche de Paris. E precisamente nesse ano o "desvio" de Seurat leva Félix Fénéon a proclamar na «Vogue» o início do pos-impressionismo.
Apesar de uma corte de fiéis admiradores, Monet vai deixando de ser visto em Franca como um inovador - alguns dos seus companheiros formulam mesmo reservas sobre os novos trabalhos, e por vezes sugerem que os quadros já são apenas «feitos para vender» (Degas segundo Pissarro). Zola distancia-se com um romance claramente hostil (L'Oeuvre, também de 1886). Signac anota no seu diário, a proposito das Medas: «O grande tenor de outrora esta afónico, o virtuoso está paralizado». As obras de Seurat (que morrerá logo em 1891), de Cézanne (morto em 1906), de Van Gogh (em 1890), de Gauguin (em 1903), tomam o primeiro lugar nos debates sobre a evolução em pintura; depois será ainda o cubismo, a abstracção, o gesto radical de Duchamp... e Monet pinta até 1926.
As historias da arte, em geral, não sabem que fazer às carreiras longas dos artistas, às obras desenvolvidas nas maturidades exercitadas durante décadas; ocupam-se de escolas e de rupturas, de revelações, de momentos que permitam estabelecer uma ordem cronologicamente linear e uma aparência de constante passagem de testemunhos. Monet fora até 86 o chefe de fila dos impressionistas, depois é um sobrevivente incómodo. (Picasso viria a ser um caso idêntico.
Do instante à série
Pelo fim da década de 80, Monet passa a trabalhar quase exclusivamente em séries de pinturas, que não só se concentram sobre um mesmo tema (o que sucedera em outras circunstâncias anteriores) como repetem o mesmo ponto de vista e a mesma distância do motivo. A variação gradual da luz do dia, do nascer ao por-do-sol, e das condições climáticas (Verão-Inverno) parecem levar a um ponto extremo a vontade de captação do instante e os princípios da pintura naturalista de «plein air».
As suas cartas e alguns relatos do tempo mostram-no diante do cavalete, pintando durante 15 minutos sobre cada tela para tentar seguir os efeitos do curso do sol, auxiliado por alguém que lhe vai rapidamente estendendo o próximo quadro.
Em 1905, uma carta ao «marchand» Durand-Ruel contradiz parte substancial do mito: « ... que as minhas catedrais, as minhas Londres e outras telas sejam feitas 'd'après nature' ou não, isso não diz respeito a mais ninguém e não tem nenhuma importância», Uma outra declaração feita em 1895 a um jornalista norueguês (e Monet não era particularmente dado a teorizar sobre a sua obra) já avançara um outro tópico divergente das interpretações naturalistas: «O motivo é para mim uma coisa secundária, o que eu quero reproduzir é o que há entre o motivo e eu.» Enquanto Paul Hayes Tucker realiza no catálogo-livro da exposição uma aprofundada reconstituição biográfica de toda a década de 90, Marcelin Pleynet procede no seu ensaio ao estudo inteligente do que se altera na pintura de Monet a partir das séries.
As etapas da revolução
Ao repetir um motivo, ao ultrapassar a unidade do quadro para acentuar «a ordem e o lugar dessa unidade na série» (M.P.), o trabalho de Monet tem por consequência tornar evidente o «papel pretextual do motivo» e a «desrealização» do tema, ou seja, a transferência do essencial do trabalho do pintor para «as qualidades propriamente, especificamente picturais» (idem) da pintura. Da exacta reprodução do que vê o pintor, fazendo dos «efeitos de luz» o aparente objectivo do quadro, Monet passa no seu trabalho no atelier à questão da coerência interna de cada série sobreposta à referencia ao exterior. (O modo como esta nova atitude responde à eficácia da fotografia - e sabe-se que o interesse ainda pouco esclarecido de Monet pela fotografia o leva à construção de um laboratorio em Giverny - é uma questão certamente a aprofundar.)
Em especial as series das Medas, dos Álamos e das Catedrais podem ser vistas hoje, seguindo M. Pleynet, como exercícios decisivos sobre problemas práticos progressivamente colocados à pintura pós-naturalista. É a própria desrealização do espaço formal e ilusionístico da representação que se acentua na primeira dessas séries: o conflito ente os dois planos dominantes na tela (o primeiro plano da meda e o do resto da superficie do quadro) sublinha, pela própria arbitrariedade do enquadramento da paisagem circundante e pela acentuação dominante da horizontalidade, o valor do plano geral (a superfície) da tela. Na série seguinte (e mais visivelmente em quadros como As Quatro Arvores, do Metropolitan de NY, onde os troncos e os seus reflexos verticais na água são abruptamente cortados) e a repetição de uma mesma organização formal que recorta o quadro numa sucessão de quadrados e rectângulos que anula as clássicas regras da composição e abandona o código antigo da criação da ilusão de profundidade da tela regulado pela perspectiva.
E é a seguir na serie das Catedrais que o confronto com os elementos fundadores da tradição atinge o seu ponto limite que permitirá depois a invenção das Nynphaeas. Ai, de novo pela arbitrariedade do enquadramento (mesmo que ele correspondesse ao ângulo de visão que tinha da janela da sua pensão em Rouen), Monet diminui radicalmente a distância que o separa do motivo, aproximando-o do plano da tela e negando (quase) todos os seus valores volumétricos.
Linhas de sucessão
«Monet suscitava então a admiração dos estetas fim de século, como Proust, quando as suas iridescências diáfanas iam já no mesmo sentido do ideal de preciosismo açucarado que deveria suplantar o cromo victoriano nos favores do povo. Aparentemente nunca o precioso se tinha transformado tão depressa no seu contrário (o banal) como em 1900. Em 1920 a arte de Monet tinha adquirido um sabor de época ... » «Tinha sobrevivido demasiado tempo e à data da sua morte, em 1926, ele tinha-se tornado anacrónico». É Clement Greenberg quem o escreve, em 1956-59, enquanto procede a um dos primeiros esforços de «reabilitação» de Monet. Mas já em 1948, na esteira de Shapiro, ele vira a pintura final de Monet transformada, 20 anos depois da sua morte, no «ponto de partida de uma nova tendência pictural», referindo-se à irrupção da abstracção norte-americana.
Greenberg valorizava então Monet como o antecessor da pintura «all-over», como o pintor que mais (do que Seurat, Cézanne, Van Gogh, Gauguin, Matisse e Bonnard) «atacou os princípios tradicionais da composição na sua maturidade e velhice», reduzindo cada vez mais a fictícia profundidade do quadro segundo efeitos calculados de planeidade e frontalidade. Restabelecia-se assim, à distancia, um contacto entre Monet e a vanguarda que parecia interrompido desde os anos 90, quando era por Cézanne que passava a possibilidade de «progresso».
Dois testemunhos de pintores citados por Marcelin Pleynet vêm, entretanto, alterar os dados dessa sucessão. Kandinsky, num texto recentemente traduzido do russo, recorda a sua surpresa diante de uma das Medas de Monet vista nos princípios do século: «E de repente, pela primeira vez, eu via um quadro... Eu sentia confusamente que o objecto faltava no quadro». «Tive a impressão que aqui a pintura vinha em primeiro lugar; interroguei-me se não seria possível ir mais longe nesta direcção.... Tinha 'encontrado o olho' para o abstracto na arte» (in W.K., Regards sur le Passé, ed. Hermann, 1974). Malevitch vê em 1919 uma das Catedrais de Rouen e anota: «... ninguém tinha visto a pintura em si mesma, as manchas de cor moverem-se, crescerem até ao infinito ... ; todos os esforços de Monet tendiam a cultivar a pintura que brotava sobre as paredes da catedral. Não era a luz e a sombra que constituíam o seu objectivo principal, mas a pintura colocada na sombra e na luz. Picasso e Monet extraíram o pictural como quem extrai as pérolas das ostras. Não era da catedral que precisávamos mas da pintura ...» (C.M., Ecrits, ed. Champ Libre, 1975).
Estes testemunhos estabelecem uma relação perdida entre as pesquisas da maturidade de Monet e o nascimento da primeira abstracção, fixando para esta, através da crescente desrealização do tema por Monet, na afirmação da autonomia do pictural sobre as convenções da perspectiva da reprodução naturalista, uma linha de continuidade imediata com a pintura das séries dos anos 90.
Uma grande exposição que, há vinte anos, visitamos juntos, tu para o Expresso e eu para a Artes & Leilões e me dá prazer recordar.
Mais ainda porque que foi antecedida por uma visita a Giverny onde, nos jardins da Casa de Monet, foi possível ver muito do que serviu como motivo para a série das " Nynphaeas".
Reli o texto e constatei que não perdeu nada. Uma das vantagens de escrever sobre coisas cuja importância não se perde com o tempo!
Posted by: AB | 01/18/2010 at 20:33