No piso subterrâneo da Appleton Square Pedro Zamith continua, até sábado, durante as tardes, a trabalhar na sua exposição, isto é, a pintar um mural ao longo das paredes da segunda sala, retomando muitos dos personagens presentes nos quadros que se vêem em cima. Primeiro a mancha de cor, amarela, e depois o desenho a tinta preta, sem estudo ou esboço prévio, a seguir livremente o fundo colorido ou a excedê-lo, com ou sem escritos. Deverá estar tudo concluído por altura do encerramento que está anunciado para as 18h, e também será apresentada na ocasião uma fotografia de Daniel Malhão sobre o mural ainda em realização.
"Zoollywood", a exposição de 2007 na Galeria Arquê, que teve um livro homónimo a acompanhá-la (e Ana Ruivo escrevia o necessário texto), ía buscar ao cinema as suas referências explícitas, recriando imagens de filmes ou os respectivos "bastidores" e também os seus públicos. O trânsito entre a pintura e a ilustração - porque são coisas diferentes embora de incertas fronteiras, e não são o suporte papel impresso ou tela, a escala ou a dimensão, que as distinguirão, se for conveniente fazê-lo, e há grande pintura que ilustra para complicar o problema - era então mediado por essa terceira condição de visibilidade, ou esses terceiro universo de criação e consumo de imagens, a evocação da imagem projectada e em movimento, tratando-se em geral de apropriações de personagens bem emblemáticos depois sujeitos a metamorfoses ou monstrificações. O exercício sobre as imagens cinéfilas desdobrava-se então em diferentes estratégias de relação da linha com a cor, do branco e preto aos filtros monócromos ou aos fundos de cor uniforme, depois às composições polícromas onde a mancha de cor lisa é suporte de desenho, e ainda apareciam outros usos da tinta informalmente pincelada e a colagem de objectos, como quem ensaia recursos. Tratava-se certamente de dar sempre mais eficácia às figuras pintadas experimentando a presença material da pintura nas suas diversas possibilidades. Para além de se homenagear o cinema e de aí buscar temas e energias para pintar, tratava-se de afirmar a pintura e o questionamento dos seus meios.
Se vale a pena começar por recordar esse ciclo é porque agora se trata de fazer pintura sobre pintura, depois de fazer pintura-ilustração sobre cinema. Nunca no sentido ensimesmado e redutor da arte que "reflecte" sobre arte, mas como tema e revisitação de obras maiores do passado, distante ou próximo, como reapropriação de imagens, de linguagens e de meios. O desafio é grande, porque se trata de utilizar e enfrentar grandes referências, e a aposta é ganha, plenamente ganha, como se o revisitar de personagens e situações se sustentasse agora de um relacionamento aprofundado não só com o que pode haver de crítico, caricatural ou grotesco nas imagens escolhidas como com o sentido histórico e com a eficácia plástica de cada um dos artistas convocados. E não se trata obviamente de escolhas acidentais. Pedro Zamith vai buscar os expressionistas críticos da Alemanha do 1º pós guerra e os pintores da Nova Objectividade que mais cruamente expuseram os males do seu tempo (Grosz, Dix, Beckmann, Schad), e também o pathos romântico e revolucionário de Géricault e Goya, para continuar até ao excesso físico de um modelo de Freud. Mas também Chagall e Chuck Close ele mesmo, por exemplo.
No site de Pedro Zamith há ainda mais quadros, alargando a série. E não é de uma fórmula que se trata: as apropriações são diferentemente concebidas, as obras referidas (não se trata de citações) são mais ou menos divulgadas, mas em todas elas se reconhece que a visita ao trabalho alheio projectou o trabalho de Zamith a plataforma de eficácia inédita.
O seu trabalho terá como áreas de interesse e de prática mais notórios a banda desenhada, a ilustração que se especializou como disciplina própria, o grafitti e o cinema, ou seja, linguagens e imaginários recentes, urbanos e democráticos. A visita a outra tradição mais longa, mais densa de direcções e problemas, eventualmente mais aristocrática e ambiciosa pelo prestígio que a envolve (o Museu!), não podia ser apenas um encontro de circunstância - ou uma oportunidade perdida. A pintura foi sempre feita sobre ou (a favor e) contra a tradição da pintura, tornando-se também em grande parte consciência dessa tradição da pintura (até à paralisia, o auto-encerramento académico, a absoluta chatice tantas vezes). É isso, a pintura sobre a pintura, que faz agora PZ com os seus recursos próprios trazidos de outros modos recentes da produção (manual e mecânica) e da circulação das imagens, actualizando também as referências factuais dos seus quadros e o respectivo sentido de intervenção crítica (a pintura sobre o presente do mundo). O título "Série B" dado à mostra, num outro exercício de humor a somar aos que a atravessam, refere explicitamente o cinema e a cultura popular urbana como horizonte de circulação desta pintura que evoca o Museu e se joga no presente, e com a cultura de hoje.
Não posso deixar de agradecer a conversa e a visita ao meu atelier temporário( principalmente, por não saber que eram vocês!). O mural continua...desenfreadamente até Sábado, mas com muito gozo na construção dos meus bonecos.abraço
Posted by: pedro zamith | 01/07/2010 at 13:31