Já está a ser anunciada pela Fundação Gulbenkian a primeira parte da grande exposição internacional dedicada à natureza-morta a inaugurar em Fevereiro, uma das suas mais ambiciosas iniciativas de sempre, que ficará a marcar o fim da presidência de Rui Vilar. Há no entanto um erro de tradução do seu título que conviria corrigir - e ainda é tempo.
O título original inglês é "IN THE PRESENCE OF THINGS", que se traduz muito simplesmente por NA PRESENÇA DAS COISAS, respeitando o carácter polissémico de presença (estar em, ser ou estar com, ser ou estar diante de algo, viver ou experimentar essa relação de proximidade real com algo ou alguém), sendo o seu sentido de realidade existencial reforçado pela proposição IN / NA -, e seria diferente dizer na presença ou só a presença.
O que é no original "NA PRESENÇA DAS COISAS" surge em português como "A PERSPECTIVA DAS COISAS". É uma versão empobrecedora e errada.
Se a expressão "A perspectiva das coisas" tem algum sentido, o que não é certo (as coisas têm presença mas não têm perspectiva...), ela desloca-se da experiência do existir para o processo da representação, das coisas para as imagens. Basta a "presença" de um dos quadros da mostra para se perceber que a perspectiva é apenas uma parte da questão...
Pieter Claesz (1596/97-1660), Vanitas com Rapaz com Espinho (Spinario), 1628
Óleo sobre madeira, 70,5 x 80,5 cm, Amesterdão, Rijksmuseum © Rijksmuseum, Amsterdam
Desenvolver a questão exigiria invocar uma rectaguarda extensa na filosofia e na estética, e poder-se-ía citar Husserl, a fenomenologia, Bachelard, Sartre, etc. Usando o Vocabulaire d'Esthétique de Étienne Souriau, PUF (1990), pode transcrever-se presença como qualidade do que existe aqui e agora; em sentido figurado (e num sentido eminentemente estético) é a qualidade do que assume uma existência intensa, "uma força no ser (une force dans l'être) que marca profundamente o espectador". Por perspectiva refere-se a "arte de representar sobre um plano objectos a três dimensões, tal como eles aparecem ao espectador". A perspectiva - ou as perspectivas - tem a ver com os sistemas de representação das coisas (das cenas, das paisagens), separando-se da complexidade do visível e da experiência sensível do mundo para dela extrair elementos marcantes e simplicados que sirvam de filtro de legibilidade das coisas.
A perspectiva (modelo, instrumento e convenção - central, paralela, descritiva, panorâmica) é aqui apenas uma parte da presença, já uma formalização da presença, ou pode ser mesmo uma representação sem presença (e a descrição de uma presença sem perspectiva é também possível). É um caminho errado de abordagem da natureza-morta, por onde se perde grande parte do que é o fazer e o ver da pintura: transcrever a intensidade das coisas que são vistas e a visão do espectador como apreensão dessa anterior presença viva das coisas. O visível como intensidade sensorial por si mesma. Para todos os pintores que requerem a presença do modelo como condição de possibilidade da sua pintura - como Morandi, Freud, Arikha ou agora Paula Rego, para citar últimos herdeiros de uma longa tradição - este título é obviamente redutor, e mesmo gravemente empobrecedor. Aliás, desde o século XVI que a pintura rejeita as implicações demasiado disciplinadas, rígidas da perspectiva.
Sobre a exposição: http://www.gulbenkian.pt
Óleo sobre tela, Dordrecht, Dordrechts Museum
Inteiramente de acordo. Texto muito esclarecedor. Aliás, "Na presença das coisas", além de ter um significado mais intenso, é também um título mais belo.
Posted by: Propranolol | 01/26/2010 at 00:13