EXPRESSO Actual, 12 Fevereiro 1994, pp. 15 e 16
PINTURA PORTUGUESA NO SÉCULO XXBernardo Pinto de Almeida
É indispensável reescrever a história da pintura portuguesa do século XX, e podia supor-se que um crítico e universitário surgido nos anos 80 teria a vantagem do distanciamento geracional para corrigir o que é prejudicado nas histórias antes escritas pelo empenho em defender memórias e companheirismos pessoais nas batalhas travadas pela afirmação da modernidade.
Esta não é uma "História da pintura...", avisa-nos o autor ("não chega a sê-lo completamente... para tanto faltando maior explicitação da investigação..."). A prevenção sobre a natureza deste livro tem de ser levada em conta para que não se lhe exija o que não quis ou pôde ser, mas B.P.A. comete logo a seguir à sua declaração de modéstia a imprudência máxima de lhe definir o "exacto perfil" como uma "Estória... à maneira de Gombrich". Não podia elevar mais a parada, e por isso há que dizer, desde já, que o que lhe faltou não foi a "explicitação da investigação" mas, pura e simplesmente, a investigação.Por vezes, os comentários que vai fazendo, ao longo do livro, às obras dos artistas individualmente considerados, quando as viu, revelam as qualidades de observação e interpretação que se conhecem de textos críticos dispersos ao longo da última década. Elas poderiam ter sido o suporte de um discurso que percorresse livremente os seus artistas de eleição, estabelecendo um diálogo problematizador com as pinturas, liberto das obrigações da cronologia e da abordagem globalizante.
Como história, mesmo incompleta (ou "estória" dirigida um "público não especializado"), falta-lhe rigor metodológico e factual, em matérias já cobertas por extensa bibliografia. A um ponto tal que não interessa discutir a ausência de qualquer concepção estruturante que viesse permitir o entendimento do do que se foi passando na pintura portuguesa para além da passagem das décadas — as cinco gerações de José-Augusto França mantêm ainda uma invejável operacionalidade.
Não tem também o menor interesse polemizar sobre as valorizações individuais, tantas vezes conceptualmente contraditórias, que se vão distribuindo na corrida, como se escrever história ou ver pintura fossem um permanente ajuste de contas circunstanciais com inimigos ocultos, nem são as pequenas batalhas de opinião em torno da actualidade que importam para a consideração deste livro infeliz. Por isso, será só sobre o passado distante que se concentram as observações seguintes. Começando pela década de 30 e discutindo apenas alguns exemplos pontuais mas definitivos.
"Esta década foi ainda marcada, positivamente, pelo surgimento de alguns nomes fundamentais para a história da pintura portuguesa deste século: Vieira da Silva, uma das mais jovens participantes nesse 1º Salão (dos Independentes) de 1930 e que, marginalizada no meio artístico português, partiria primeiro para o Brasil e depois para França, onde se naturalizou, e veio a afirmar-se como um dos mais singulares valores da chamada 'École de Paris'" (pág. 73).
É a única referência substancial que cabe à pintora, sem direito à comprovação do juízo de valor nem qualquer reprodução das obras portuguesas dos anos 30. Para a entender, porém, há que prolongá-la com outra citação, contraditória mas extraída de uma entrevista concedida para lançamento deste livro ("Público", 2/1/94): "Olhando hoje, não creio que a importância da Vieira tenha sido mais do que (...) ter constituído uma bandeira, um exemplo (...) Hoje em dia é valorizada por razões que têm muito mais a ver, provavelmente, com o mercado, etc... Não creio que a Vieira seja uma grande pintora portuguesa. É uma notável artista (...), mas é fundamentalmente uma pintora da Escola de Paris".
Fica instalada a dúvida: o "nome" é fundamental ou não é? E fica uma certeza também: em Portugal ainda tem curso a velha prática totalitária de expatriar os artistas que se destacaram como protagonistas da Escola de Paris.
Mas o mais importante, para avaliar a trapalhice do parágrafo transcrito, é recordar que M.H.V.S. tinha partido em 1928 para Paris, com 20 anos, e que em 1935, durante uma estadia de perto de dois anos em Portugal, já casada com Arpad, fez em Lisboa a sua segunda exposição individual, na galeria UP, de Tom e António Pedro ("Estão aqui os primeiros quadros modernos que se expõem em Portugal desde Amadeu de Sousa Cardoso", escreveu o poeta no catálogo). Em 1936, o casal mostrou pinturas abstractas no seu atelier de Lisboa, onde João Gaspar Simões proferiu uma conferência de apologia da abstracção, facto pelo menos pioneiro.
No mesmo ano, antes de regressar a Paris, Vieira participa numa colectiva de Artistas Modernos Independentes, com Almada, Sarah Afonso, Eloy, Júlio, Arlindo Vicente, Arpad, Szobel, Semke, Hayter e Pedro, entre outros, que se sucedeu polemicamente ao primeiro Salão de SPN. Em Setembro de 1939, o clima de guerra traz de novo o casal para Lisboa, onde, já em 1940, Vieira ganha um prémio pela decoração da montra de uma cutelaria. Em Junho, partem para o Brasil e lá permanecem até 1947. A naturalização francesa ocorrerá só em 1956, depois de gorados os esforços para que o apátrida Arpad adquirisse a nacionalidade portuguesa. E vale a pena assinalar que também em 1956 Vieira faria uma pequena exposição na Galeria Pórtico (fundada por René Bertholo, Escada, entre outros), com a qual se comprovava que, ainda para uma nova geração de artistas, Vieira continuava a ser, de facto, "um nome fundamental" e também "uma bandeira".
Releia-se a síntese de B.P.A. para observar como ela consegue ser, em simultâneo, omissa de dados essenciais e indutora de vários erros. Até porque nada permite dizer que Vieira tenha sido "marginalizada"; o que acontece é que no meio artístico português não havia compradores de pintura, e menos ainda de pintura moderna.
Entretanto, não deixa de ser significativa a total ausência de menção às actividades da Galeria UP (a primeira galeria comercial de arte moderna, activa entre 1933-36), talvez para, além de se reconsiderar os méritos da pintura de António Pedro, contra a sua sobrevalorização por J.A.França, reduzir também a originalidade da carreira do nacional-sindicalista dos anos 30 ("incansável animador cultural numa época em que sê-lo correspondia a viver perigosamente" — lê-se na pág. 96).
Globalmente, B.P.A. caracteriza a década de 30 como "o período de consolidação de uma afinidade estética e ética de muitos dos artistas portugueses com o regime: não apenas no que se refere à quase unânime vinculação dos artistas às encomendas e aos Salões oficiais, como sobretudo à sua adesão a um programa estético que tentava conciliar produção artística e acção de propaganda política" (pág. 71).
Nunca se reduziram de modo mais estalinista — até ao plano sumário dos processos de intenção — as contradições que atravessavam o clima cultural durante os primeiros tempos do regime fascista, quando, graças a António Ferro, passava pela "Política do Espírito" um dos vectores essenciais da oposição ao conservadorismo estético e também alguma satisfação das insistentes reivindicações dos artistas quanto a condições mínimas de existência vital.
Até 1945, quando ocorre a redefinição política resultante da vitória das democracias e da URSS, os Salões do SPN/SNI são o terreno possível de acesso à condição de artista, por força da natureza do regime e da inexistência de mercado para a pintura. É leviano falar em "afinidade estética e ética... com o regime", tal como é incorrecto, e mesmo gravoso, associar liminarmente produção artística e acção de propaganda no "programa estético" a que a quase unanimidade dos artistas teria "aderido".
Os anos 30 são atravessados pelo conservadorismo da Sociedade Nacional de Belas Artes, pela permanente tentativa de atracção dos "modernos" por parte do SPN (mesmo à custa de sucessivos diferendos de Ferro com o gosto mais retrógrado de outros líderes do regime) e por repetidas tentativas de auto-organização independente dos artistas, desde o grupo "+ além" ou o Salão de 1930 até à exposição da Casa Repe em 1940 (com Pedro, Dacosta e P. Boden), passando em especial por essa surpreendente exposição cosmopolita de 1936, dos Artistas Modernos Independentes, na Casa Quintão.
Mas, para lá de todas as fórmulas redutoras de B.P.A., o parágrafo que dedica à Exposição do Mundo Português é exemplar de uma prática intelectual mistificadora: "Na mostra de artes plásticas estiveram envolvidos... 43 pintores. Dos pintores portugueses modernos de quem se vem falando, muito poucos foram os que não se associaram servilmente: excepções honrosas foram as de Júlio, Mário Eloy, António Soares e poucos mais, entre os mais velhos, e de António Pedro e António Dacosta, entre os mais jovens" (pág. 87).
Não se tratava de modo algum de uma "mostra de artes plásticas" e todos os pintores "envolvidos" o foram pelas suas qualidades de decoradores (dos cinco citados, só Soares as tinha). Mais grave ainda é considerar "excepções honrosas" os casos de Júlio, que deixara de pintar em 1935 por razões de saúde (mas que enquanto homem da "Presença", e engenheiro, se manteve distante das iniciativas do regime); de Mário Eloy, que não voltou a expor depois de 1939 e foi internado em 40 com os primeiros sinais de loucura (foi Prémio Sousa Cardoso em 35 e voltou a expor nos Salões do SPN em 38 e 39); de António Soares (Prémio Columbano em 35 e 49, além de participante nos salões de 36 e 48); de António Pedro (expositor do SPN em 39, 42 e 44) e de António Dacosta (expositor em 41, 44, 45 e 46, Prémio Sousa Cardoso em 42).
A expressão "associar servilmente" utilizar-se-ia, afinal, se se tivesse a mesma visão policial da história, a respeito de (quase) todas as "excepções honrosas" de B.P.A. e, em especial, dos dois protagonistas da exposição de 1940, Pedro e Dacosta, a quem no entanto se atribuem "os primeiros sinais de uma nítida rebelião e consequente oposição no domínio das artes" (pág. 89). É fundamental saber que o primeiro surrealismo português, até 44, com o seu terceiro protagonista, Cândido Costa Pinto, atravessa, de facto, os Salões do SPN, e a exposição da Casa Repe não pode ser tomada pela ruptura que não foi.
Ao abordar os anos 40, B.P.A. segue a lição geral de J.A. França, considerando a exposição de Belém "mais o fim do que o princípio de alguma coisa". É pressa sem sentido estético ou político: os Salões lá foram continuando até 1951 e é só o fim da guerra que constitui uma charneira histórica decisiva, condenando-os ao confronto, a partir de 46, com as Exposições Gerais.
Poderíamos, neste capítulo, desenvolver os inúmeros erros desta descuidada história: — "A partir de 1943, uma série de jovens artistas de ESBAP..." (pág. 89 — à data, eram jovens saídos da António Arroio, com poiso irreverente no Café Hermínius, como Cesariny contou, e alguns começavam a expor no SPN; mas o essencial é que a emergência do neo-realismo como movimento artístico tem de ser datada só de 45/46);
— "Publicações lançadas nessa década, em que se salientam as revistas 'Vértice' e 'Seara Nova'..." (pág. 90 — pobres seareiros dos anos 20!);
— "Fernando Lemos... pôde confirmar em recente retrospectiva organizada pela Fundação Gulbenkian" (pág. 96 — a F.G. infelizmente não organizou);
— "Foi António Pedro, inequivocamente, o grande introdutor do surrealismo em Portugal, assumindo-se como principal animador da fundação do Grupo Surrealista de Lisboa" (pág. 96 — ele ter-se-á assumido, mas, em 48, dizia oficialmente o "contabilista" França, no seu Balanço...: "A.P. foi procurado pelos interessados e mais interesse lhes trouxe", o que basta para restabelecer o hiato essencial entre as duas fases da introdução surrealista);
— "Já em 1942, no Porto, Fernando Lanhas... realizara as suas primeira obras abstractas..." (pág. 92 — é em 44 que pinta os dois primeiros óleos abstractos, só mostrados em 45, e os incertos desenhos de 42 não têm consequências);
— "Chegado de uma primeira aventura neo-realista (e depois de ter estado ligado às Exposições dos Independentes no Porto), assinale-se a então nascente obra de Júlio Resende" (pág. 105 — mas Resende foi, pelo contrário, o primeiro a "chegar", e nunca foi neo-realista...).
As incorrecções não têm fim. Acrescente-se só mais uma, que pode ser um simples lapso mas confirma a ligeireza com que se distribuem as medalhas: "António Dacosta... realizou até 1947 (ano em que partiu para Paris, onde deixou de pintar até à década de 80) uma pintura que o coloca entre os maiores artistas portugueses da segunda metade do século." (pág. 96 — até 1947... segunda metade; e atenção às "pinturinhas" que foi fazendo na década de 70).
Essencial, nesta matéria, seria começar a valorizar, contra as teses dominantes, o lugar central das Exposições Independentes (a partir do Porto, de 1943 a 50), como primeira plataforma pública de todas as aberturas e interrogações, frente à sobrevalorização do neo-realismo e do surrealismo, prateleiras fáceis para arrumar agitações sócio-culturais que foram nos anos 40, nas artes plásticas, apenas inícios de obras ou mesmo só promessas. E o facto de Resende, Nadir e Lanhas começarem a expor no SNI a partir de 45 só exige maior fineza de análise.
Tem-se uma visão estreita da criação artística quando se resume esta década (e, aliás, todas as outras também) à "tentativa... de uma vez mais entrar em sintonia por relação com o que internacionalmente ia acontecendo", mas é puro erro apontar a seguinte ordenação de movimentos: "o neo-realismo, o surrealismo e, logo (em grande parte como consequência deste último) o abstraccionismo..." (pág. 93). Aliás, mesmo na página anterior, uma citação tomada a Fernando Guedes desmente um B.P.A. incapaz de se decidir quanto ao momento certo da "afirmação de uma vontade de forma abstraccionista" ("nos finais dos anos 40", "já em 1942", "em 48", "desde 44 e num gesto pioneiro mesmo em contexto europeu", tudo isto em apenas oito linhas da pág. 92).
Depois, saltando velozmente na "estória", como compreender os anos 60 através de uma seriação de 33 nomes onde cabem apenas linha e meia a Costa Pinheiro e duas linhas a René Bertholo, numa sistemática menorização de estrangeirados que totalmente desconhece o que eram as condições de vida e de produção artística no interior do país? Como entender a displicência de uma citação tomada a Alexandre Melo e João Pinharanda a propósito de Menez, não ilustrada, da parte de quem se candidatou a publicar o mais grandiloquente dos elogios? Que sentido faz a inventariação consecutiva de João Vieira, Manuel Baptista, Noronha da Costa, António Sena, Armando Alves, Jorge Pinheiro, Domingos Pinho, Cruz Filipe, Fernando Calhau, João Dixo, Eduardo Batarda, Z.L.Darocha, José de Guimarães, Júlio Pomar, tratando-se de dar a ver as problemáticas, os imaginários, as "rupturas" e as "confirmações" dessa década?
Acelere-se ainda no tempo, só para reagir à amálgama de ocorrências do domínio da sociologia cultural que fazem do período 74-84 "uma verdadeira explosão de novas atitudes face à actividade artística". Trata-se, para B.P.A., de tornar incomprensíveis os anos 80, os seus tortuosos anos 80, e é para isso que a década se subdivide pelos três capítulos finais. Não vale a pena acompanhá-lo.
No terreno da crítica, a asneira é livre, e às vezes até estimulante. As tropelias travestidas de história têm consequências mais graves, em especial num país onde a inexistência de museus e de uma tradição universitária consolidada mantêm a arte contemporânea como coutada para todos os oportunismos.
(Lello & Irmão, Porto, 1993; 216 págs,, 12000$00)
com réplica a 26 Fev., pág. 25
e "Ponto Final" no mesmo dia, pp. 25 e 26
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