2010, "Um tapete voador, uma casa, uma pirâmide, um jardim japonês, uma colecção de grelhas e uma pedreira (e mais algumas coisas)", título geral da exp. da 111, 2ª individual em Lisboa *
Para acompanhar as naturezas mortas da Gulbenkian e prolongar o género ou a reflexão sobre o género até ao presente - os quadros mostrados na FG estão vivos e, aliás, as naturezas mortas, as coisas vistas e pintadas, são mais coisas inanimadas do que mortas - há que ir ver até dia 20, sábado, os desenhos e pinturas de João Francisco na galeria 111: já era certamente a mais importante exposição do início do ano e agora torna-se mais relevante ainda, com a associação à fantástica exposição que o Museu Gulbenkian nos traz ("Na Presença das Coisas" - título corrigido), e é, para ambas, uma mais-valia como agora se diz por tudo e nada.
www.111...joaofranciscolisboa/
Sem título - O Diorama, o/t, 160 x 180 cm. (1)
Pintura do natural, de observação, mas, acontecendo esta no atelier como é habitual na N-M, são também as construções e acumulações que importam e, entre outras coisas, a ironia com que são realizadas e pintadas, encenando e descrevendo um discurso visual que se abre a sucessivas pistas e sentidos (conteúdos, reflexões) vários - há artistas que se limitam as juntar as coisinhas encontradas, apropriadas, coleccionadas mas é uma prática preguiçosa: a recolha, a colecção, a montagem-encenação e a "transcrição" são aqui fundamentais.
Nunca se trata no caso de JF das coisas vistas/pintadas apenas por elas mesmas (mas também é isso, decerto), nem do exercício "puro" da representação, da sua veracidade ou verosimilhança (e aqui não há propriamente vontade de ilusão nem demonstração de virtuosismo - embora lá estejam), nem de "pintura só para os olhos", nem de "pintura face a ela própria"* (correspondendo por antecipação aos ditames da autonomia disciplinar do formalismo tardomoderno), etc. (* - referência ao útil artigo de Joaquim Caetano no Público de 12 de Fev.)
Aqui a representação pictural toma por modelo (cenário) objectos que são já representações reduzidas do mundo, intermediações, miniaturizações: os vasos de plantas (e não floreiras), os pássaros-objectos e um Snoopy meio escondido, e o livro aberto, a escrita que descreve e interpreta todo o mundo e a arte. O grafismo que se aplica na bd, na ilustração e no "cartoon", sintético rápido plano, ágil e crítico, menos auto-referencial que interventivo e em especial comunicativo, está ali presente como lugar de passagem, homenagem e recurso a explorar - depois de uma certa (só parcial, relativa, é certo) condenação da pintura à mudez ao longo do século XX, por contradição compensatória com um anterior excesso de retóricas e precipitada defesa face à fotografia e ao cinema; esses destino do desenho são uma reserva de informação e energia com que a pintura se revitaliza.
O comprazimento na contemplação, a autocontemplação do olhar que segue a mão que segue o olhar (Arikha), a experiência vital da presença das coisas (e não "a perspectiva" como absurdamente se escreve na FG: andam todos a dormir!) são aqui questões que não empatam a eficácia e a pressa de João Francisco em fazer o que os outros não fizeram, mas referindo-os a tudo.
Mestre da Natureza-Morta de Hartford, Natureza-Morta com Flores e Frutos, Óleo sobre tela, 76,2 x 100,4 cm. Hartford, Wadsworth Atheneum Museum of Art, CT. The Ella Gallup Sumner and Mary Catlin Sumner Collection Fund (FG: "Na presença das coisas")
Sem Título - na Alemanha, 2008, a./p., 100 x 140 cm. (2)
As casinhas (a cidade), os blocos de madeira (noutras obras referem-se às "esculturas" do Carl André), o quadro no quadro, por sinal uma paisagem e também por sinal as altas montanhas com neve, o sublime - o relógio que marca o tempo, de trabalho e de vida, etc.
Sem Título - O coleccionador de grelhas, 2009, o.t., 160x180 cm.(3)
Aqui a natureza morta é uma paródia da teoria da grelha na pintura modernista (uma paródia por antecipação ao erro de tradução compreensão que o título da Gulbenkian "representa"): a grelha perspéctica da perspectiva que se autonomiza como tema da pintura "pura".
Sem Título - O homem que queria ter uma escultura, 2008, a.p., 100 x 140 cm. (4)
O gozo com o Carl André (o que é um exercício de admiração, pelo menos de curiosidade) é aqui notório, ou muito fácil de entender - e lá está em cima à dir. o relógio, mas virado do avesso (o tempo corria ao contrário? em direcção a lado nenhum?)
Sem Título - Atlântida, 2008, a.p., 100 x 140.(5)
O relógio é de sol, e o tapete é o mar que cobriu a cidade perdida, e em cima pode ser uma pintura "abstracta", não referencial, figurando o céu. A natureza morta pode ser narrativa, trocando as voltas à caracterização do género, é já pintura de história.
A presença da pintura "abstracta", no fundo de 2 e na janela de 5. A grelha. Carl Andre.
A paisagem e a pintura de história. A inversão da natureza-morta: as coisas sob a toalha de mesa; a toalha-mar
O fundo como chão
* Entre 2008 e 2010, apresentou na 111 do Porto "Um jardim, um tapete voador, um diorama, algumas paisagens e outras construções", pintura e desenho, 2009
Comments