arquivo EXPRESSO Actual 21-04-2000 (Há 10 anos)
"Artes primeiras no Louvre"
CHAMARAM-SE até há poucos anos artes tribais ou artes primitivas. Mas à questão do rigor terminológico somou-se a vigilância do pensamento politicamente correcto. Serão artes primeiras, primordiais, originais? As várias designações não recolhem o consenso. Artes longínquas, como propôs em 1920 o crítico Félix Fénéon*, é também um nome obviamente eurocêntrico. A questão não tem, por enquanto, solução, e por isso o novo espaço do Louvre que lhes é dedicado, aberto ao público na terça-feira, recebeu o extenso nome de Artes de África, da Ásia, da Oceania e das Américas. Além de também impreciso, será possivelmente provisório, já que não está efectivamente assegurada a própria existência das novas galerias que ocupam, no rés-do-chão da ala Denon, as antigas cavalariças do Pavilhão das Sessões (no século XIX, foi destinado às reuniões do Parlamento). Elas constituem apenas uma prefiguração do futuro Museu das Artes e das Civilizações, previsto para 2004, ou ficarão a ser uma antena permanente desse mesmo museu no seio do Louvre?
Jacques Chirac, que tem «uma paixão sincera pelas artes não ocidentais», assegura o jornal «Le Monde», exigiu que o Louvre se abrisse às «artes primeiras» e ficará associado à construção do novo museu a erguer junto à Torre Eiffel, projectado pelo arquitecto Jean Nouvel. Para Stéphane Martin, director do futuro Museu das Artes e das Civilizações (o MAC, ou Museu do Quai-Branly, designação apenas topográfica e também muito menos controversa), a abertura do Louvre representa «a determinação política de afirmar, de maneira simbólica e forte, a igualdade das culturas e o reconhecimento dessa igualdade pela França no seio da sua instituição mais prestigiosa». Chirac, na inauguração, disse que «este é um grande momento cultural, e por isso mesmo um grande momento político. (...) A política, é antes de tudo uma visão do mundo, uma relação com o mundo, um conjunto de escolhas».
Em editorial de «Le Monde» (com o título «Charivari Estético») considera-se que o Presidente «ganhou uma batalha que ultrapassa largamente as querelas obsoletas dos estetas do exotismo e dos integristas da etnologia.» O editorial do «Libération» («Vivam os 'Selvagens'!») toma também o partido de Chirac contra o que chama o conservadorismo dos conservadores (de museus) e contra os «fornecedores de lições etnográficas que, a coberto de contextualismo e de funcionalismo, não fazem mais que empalidecer o brilho das culturas que pretendem defender». Mas a retórica do editorialista sobre a «aventura estética da Humanidade» e «a unidade da aventura humana» é, no «Libération», mais ainda do que no «Le Monde», contrariada nas páginas da secção de Cultura.
Em questão está, para começar, a figura de Jacques Kerchache, amigo pessoal de Chirac, antigo negociante e actual coleccionador, designado «conselheiro científico» do MAC e comissário do Pavilhão das Sessões, à margem das hierarquias do Louvre. «Kerchache, Um Flibusteiro no Museu», titula o «Libération»; um «globe-trotter» autodidacta e de reputação «sulfurosa» que se tornou a ovelha negra dos etnólogos, mas também autor de exposições e catálogos eruditos, segundo «Le Monde».
Em 1909, quando cubistas e «fauves» se inspiravam nas artes primitivas contra as convenções académicas, Appolinaire escreveu, no «Journal du Soir»: «O Louvre devia acolher essas obras-primas exóticas cujo aspecto não é menos comovedor que o dos belos exemplos da estatuária ocidental». Claude Lévi-Strauss e André Malraux defenderam mais tarde que a arte das sociedades tradicionais, então reservada aos museus de etnografia, devia entrar nos museus de belas-artes. Em 1990, Jacques Kerchache publicou, no «Libération», um manifesto intitulado «Para que as Obras-Primas do Mundo Inteiro Nasçam Livres e Iguais». Reclamava a abertura, no novo Louvre, de um departamento dedicado às artes primeiras e teve a apoiá-lo as assinaturas de cem intelectuais, artistas e outras personalidades, entre os quais Senghor, Arman, Tinguely e Vieira da Silva.
Essa tese simbólica e politicamente correcta, que também vinha ao encontro da política de ampliação e espectacularização do Louvre, esbarrou com argumentações apoiadas no respeito pela história das várias instituições museológicas parisienses: a particular origem revolucionária e imperial das colecções de «antiguidades» do Louvre, a tradição científica e a existência autónoma dos Museus do Homem (no Trocadero) e das Artes da África e da Oceania (Porte Dorée), para além do Museu Guimet, dedicado às artes orientais. Eminentes etnólogos defenderam que a apresentação estética de objectos fabricados por povos sem escrita é um contra-senso, porque os desliga das suas funções e significados (mas a verdade é que os museus artísticos nasceram da descontextualização das peças que expõem, até se ter imposto a ideia relativamente recente e sempre problemática da autonomia da arte).
Chirac apoiou a ideia de Kerchache em 1995 e, para contornar as objecções dos especialistas, nomeou uma comissão. Esta, porém, em vez de aprovar o departamento do Louvre, pronunciou-se pela criação de uma nova instituição, um museu de novo tipo que deverá ser também um centro de investigação, onde coabitarão as diferentes disciplinas da história, etnologia, estética, linguística e arqueologia. O Presidente vê-se forçado a aceitar o projecto do Museu das Artes e das Civilizações, mas não desiste de pressionar o Louvre.
O MAC vai herdar colecções que somam 330 mil objectos; o Louvre expõe uma escolha de 117 «obras-primas» num espaço de mil metros quadrados, adaptado por Jean-Michel Wilmotte (o mesmo arquitecto do Museu do Chiado). Uma estatueta egípcia, à entrada, faz a ponte com o «antigo» museu, e abrem-se depois as salas sucessivamente dedicadas à África, à Ásia tradicional, à Oceania e às Américas pré-colombianas, do Norte e do Sul, ou seja, aos testemunhos de diversíssimas culturas que os especialistas designam como dogon (Mali), urhobo (Nigéria), paiwan (Taiwan), kanake (Nova Caledónia), nukoro (Ilhas Carolinas), tiki (Ilhas Marquesas), taíno (São Domingos), kwakiutl (Colômbia Britânica), etc., etc.
A montagem isola os objectos, a luz é abundante, sem as frequentes dramatizações com que as exposições etnográficas gostam de sublinhar a estranheza mágica de certas peças, e as tabelas reduzem a informação ao mínimo. Nesse velocíssimo «puzzle» através de vestígios dos povos esquecidos do globo, nenhum enquadramento contextualizador permitirá identificar as culturas representadas pelos objectos isolados, assim oferecidos ao possível «choque estético» do espectador ocidental que não dispõe, em geral, de qualquer entendimento dos usos, ritos, códigos e concepções do mundo que justificaram e moldam cada um deles. Serão apenas objectos estranhos, talvez intrigantes ou exóticos, eventualmente qualificados como belos. No final da montagem, porém, o visitante encontra um «espaço de interpretação» que faculta informações detalhadas sobre as peças expostas. O catálogo chama-lhes esculturas, embora, além de «estátuas» ou «ídolos», existam máscaras, assentos, vasos, bastões e postes esculpidos, etc. (Sculptures, Afrique, Asie, Océanie, Amériques, 480 págs., 340 FF).
A inauguração não parece encerrar o conflito entre os dois partidos adversos que defendem, esquematicamente, a autonomia da apreciação dita estética ou a compreensão etnológica dos mesmos materiais. Os primeiros pretendem que, finalmente, ao privilegiar a «excelência das formas», se assegurou a plena igualdade entre os objectos das culturas ditas primitivas e as obras das civilizações clássicas ou da arte religiosa ocidental, «libertando essas obras-primas dos limbos da etnografia». Mas os adversários respondem que este apagamento das diferenças culturais é, afinal, «o cúmulo do olhar ocidental» e lembram que mesmo os tradicionais museus de pintura europeia se orientam hoje por um esforço crescente de contextualização das peças expostas.
Entretanto, Pierre Rosenberg, o director do Louvre, diz que este não tem a vocação de apresentar a arte de toda a humanidade e insiste que a instalação do Pavilhão das Sessões é apenas temporária, até à inauguração do museu do Cais Branly (e nem sequer refere a designação oficial de Museu das Artes e Civilizações). A polémica, que vem desde o início do século XX, vai continuar ainda por muitos anos.
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notas: "Félix Féneon" / "Carlos Branco Mendes"
ver ceas.iscte.pt/etnografica/docs/vol_05/.../Vol_v_N2_395-408.pdf
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