Dez anos depois, episódios, circunstâncias, análises e argumentos datados (Crónicas "Extra-catálogo": 1 / 2000: "Mudanças em Serralves"; 2/2000: "Mais IPM")
Arquivo Expresso Actual 29-01-2000
"Mudanças em Serralves"
A FUNDAÇÃO de Serralves vai ter de renovar este ano o seu conselho de administração e de substituir o respectivo presidente, devido às normas estatutárias que impedem a eternização dos mandatos. Além de João Marques Pinto, saem Bernardino Gomes e Vasco Airão. Terá também de ser substituído Belmiro de Azevedo, que se demitiu, e falta preencher o lugar de um dos dois representantes do Estado no mesmo CA. Esse processo, que envolve cinco lugares em nove, poderá decorrer segundo diversos cenários.
Uma das hipóteses é que venha a prolongar-se um estado de tensão e ausência de diálogo que já conduziu, pelo menos, à falhada nomeação pelo ministro da Cultura (Manuel Maria Carrilho) de Francisco Capelo como administrador por parte do Estado, para ocupar a vaga deixada em aberto por Artur Santos Silva (o qual, entretanto, ficou outra vez disponível para assumir o seu anterior mandato). Foi na sequência deste episódio que Belmiro de Azevedo bateu com a porta.
O cenário é bastante previsível devido ao destino caracterial que se conhece na condução política actual da Cultura. Nessa eventualidade, poderemos vir a ter novos nomes no conselho de administração, mas será certa a sobrevivência da causa principal dos equívocos: um Museu cada vez mais governamentalizado, que, apesar de contar com o sustentáculo formal da chamada sociedade civil, continuará a não contar com a respectiva confiança nem com uma real implantação orgânica na cidade do Porto. O que se avalia, na prática, pela contabilização do que foi, ao logo dos dez anos de existência da Fundação, a meritória mas apesar de tudo escassa contribuição financeira dos mecenas fundadores para a criação do museu, incluindo a pobreza dos depósitos e ofertas de obras de arte (ou fundos para a sua aquisição), e se reconhece também pela ausência de uma efectiva associação – estatutária e funcional – da autarquia portuense com a Fundação e o seu Museu.
O protocolo que, desde 1997, prevê a constituição de um fundo de um milhão de contos, durante cinco anos, para aquisição de obras de arte, no qual a Fundação de Serralves participará com 300 mil contos e a Câmara do Porto com 200 mil, não desmente a alegação anterior. Comprova-a.
Entretanto, o mais recente comentário público do ministro sobre Serralves vem confirmar aquela governamentalização crescente e reafirmar um estilo governativo que associa a arrogância à inverdade: «A que é que o eng. Belmiro de Azevedo chama governamentalizar? Ao facto de o Estado financiar em 69,5 por cento o orçamento da Fundação de Serralves para o ano de 2000, e em 100 % a construção do Museu de Arte Contemporânea?» («Público», 21 de Janeiro). Convirá recordar que os fundos comunitários asseguraram 75% dos custos previstos para o edifício do Museu e que tal sucedeu porque o projecto foi reconhecido, com o aval das entidades de representação da região Norte, como potenciador do respectivo desenvolvimento. Mesmo se os custos finais dispararam, o Estado não pagou 100% do MAC.
Existe uma hipótese alternativa para desdramatizar a actual tensão e limitar a ocorrência de posteriores conflitos – já que os efeitos da governamentalização de Serralves têm uma longa história, com o seu episódio mais grave durante o mandato de Santana Lopes. Tratar-se-ia de distanciar o Museu e a Fundação das sempre possíveis arbitrariedades ministeriais (actuais e futuras), ao mesmo tempo que se começaria a dar substância à intenção recentemente anunciada de estabelecimento da Rede Nacional de Museus.
Passada a fase de instalação do Museu de Serralves, a representação do Estado no CA da Fundação deveria processar-se através do Instituto Português de Museus, deixando de ser decidida ao sabor dos humores e conveniências do Gabinete. Sendo uma entidade pública guiada, presumivelmente, por critérios técnicos e profissionais, cuja credibilização terá de contar com uma crescente autonomia e um maior protagonismo face às rotações governamentais (um Instituto não deve ser o mesmo que uma Direcção-Geral...), o IPM optaria certamente por fazer representar-se por delegados com um idêntico tipo de competência especializada e não por individualidades apenas dotadas de prestígio social e financeiro, que já têm largo cabimento no mesmo órgão. Uma tal evolução teria assim várias vantagens imediatas.
Ao mesmo tempo, poderia abrir-se um tempo de reflexão sobre alguns outros temas, no sentido de se aperfeiçoar o modelo estatutário original do Museu de Serralves.
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5 Fevereiro de 2000
Museus / "Mais IPM"
Fez-se aqui, há uma semana, a sugestão que o Instituto Português de Museus passasse a desempenhar um papel mais interveniente nas relações entre o Ministério da Cultura e a Fundação de Serralves, almofadando o que tem sido uma longa história ziguezaguante entre entusiasmos intervencionistas e momentos de tensão. Para além de substituir os sempre variáveis interesses do Gabinete pelo que, presumivelmente, será uma planificação coerente e continuada do sector museológico, o IPM introduziria nesse relacionamento um saber especializado que não se pede aos titulares da pasta. Desde já, consolidada a fase de instalação do Museu, deveria passar a caber ao IPM a designação dos dois representantes do Estado no Conselho de Admistração da Fundação de Serralves, acompanhando o momento melindroso em que ocorrerá o preenchimento de cinco dos nove lugares vagos nesse orgão com um estilo de actuação naturalmente menos crispado.
Certamente não se levantam dúvidas quanto a saber-se qual é o instituto mais habilitado para gerir o relacionamento do Estado central com a Fundação e o Museu de Serralves. Mas também é admissível que, tendo este último passado de Moderno a Contemporâneo, na designação e no horizonte cronológico de intervenção (admitindo que tal diferenciação não levanta problemas conceptuais, já agudizados pela mudança de século), se julgasse que o Instituto de Arte Contemporânea estaria mais vocacionado para o efeito que o IPM.
Acontece que, se se pode perceber que o IAC se tenha autonomizado do IPM para administrar a relação do Estado com a actualidade da produção e da circulação artística – ou seja, a representação oficial do País em eventos de diversos géneros, a resposta às inúmeras solicitações de subsídios (feiras, bolsas, exposições, catálogos, etc) e também o chamado apoio à criação, com que o IAC tende a passar, perigosamente, da administração à orientação do presente e do futuro -, não convirá, porém, admitir que se sedimentam barreiras estratificadas entre património (móvel), atribuído ao IPM, e actualidade da criação, colocada sob a tutela do IAC.
A conservação, estudo e apresentação das obras do passado não é um actividade estabilizada num tempo imóvel; pelo contrário, decorre, a cada momento, à luz dos conhecimentos e interesses do presente, e os museus também são, devem ser, organismos vivos: laboratórios da investigação sobre um passado sempre revivificado pela atenção das actualidades sucessivas. Por isso, muitas obras que mergulharam nas reservas dos museus são depois sacadas ao esquecimento para serem reconsideradas sob novos pontos de vista; por isso, igualmente, o diálogo comparativo com a criação contemporânea pode iluminar a releitura das obras anteriores (como, por exemplo, foi por vezes sucedendo na programação do Museu Nacional de Arte Antiga, à medida dos orçamentos disponíveis).
Poderia considerar-se a vantagem de o IAC dispor de uma ou mais galerias onde fosse apresentando os artistas que patrocina – era uma forma de tornar públicas as opções críticas seguidas pelos seus responsáveis, nomeadamente ao nível das aquisições de obras que o diploma que o instituiu autoriza a fazer (discutivelmente), e logo de proporcionar o debate sobre tais opções e critérios –, mas a sua própria lógica de actuação e a falta de competências adequadas não justificariam de modo algum a intervenção no terreno da museologia.
Entretanto, é o próprio IPM, enquanto estrutura responsável pelo património artístico e histórico nacional (património móvel), que viria a dignificar-se por um maior protagonismo dos seus responsáveis, necessariamente acompanhado pelos meios técnicos e financeiros indispensáveis ao desempenho efectivo das tarefas que lhe estão atribuídas. A sua breve história como organismo autónomo (só em 1992 extraído ao instituto para o património histórico) é um continuado balanço entre a determinação de levar a cabo a requalificação do panorama dos museus nacionais – já com vários exemplos razoavelmente bem sucedidos, aliás – e a marginalização desse esforço a favor de estruturas paralelas, eventos festivos e comemorativos ou outros projectos sempre mais urgentes e mais imediatamente mediatizáveis.
Sem sair do Porto, basta considerar dois exemplos: compare-se a aposta feita em Serralves com a escandalosa demora da reabilitação do Museu Nacional Soares dos Reis, menorizado ao longo de toda uma década no seu papel de mais importante equipamento artístico da cidade; meça-se a desproporção entre os meios triunfais postos recentemente ao serviço da excelente exposição «O Orientalismo em Portugal», apresentada pela Comissão dos Descobrimentos na Alfândega, e, por outro lado, a pobreza de recursos disponíveis no IPM para a esforçada revisão também comemorativa de «As Belas-Artes do Romantismo em Portugal», produzida por aquele Museu. São situações evidentes que inferiorizam o IPM enquanto espinha dorsal de uma política consequente para este sector de intervenção.
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