ARQUIVO EXPRESSO Revista 08-07-2000
CEM ANOS ANTES
Portugal como era em 1900, recordado numa exposição apresentada pelo Museu Gulbenkian. Um panorama sintético da sociedade e do quotidiano, seguido pela evocação da presença da arte nacional na Exposição Universal de Paris daquele ano
Luciano Freire, «O Perfume dos Campos», de 1899
Logo no átrio de acesso à exposição, duas esculturas, dois corpos femininos - «A Dor», de António Teixeira Lopes, e «A Vaga», de António Fernandes de Sá -, servem de emblemas complementares e contraditórios do país de há cem anos que se recorda na Fundação Calouste Gulbenkian. A primeira é uma imagem monumental e verista do sofrimento, criada em 1898 para o jazigo da família Pinto da Fonseca, no Porto, e tida como a mais dramática das esculturas tumulares portuguesas. Foi apresentada (tal como a outra) na Exposição Universal de Paris, em 1900, e o crítico José de Figueiredo, no seu relato sobre a presença nacional no certame, associou-a à impressão que lhe causaram a Vitória de Samotrácia e a Vénus de Milo - o carácter excessivo do comentário é também uma marca do tempo, tão pronto a colocar as obras portuguesas no Olimpo da arte universal, com manifesta desproporção, como a denegrir com a maior virulência as figuras públicas, responsabilizadas pela miséria e o atraso do país.
«A Dor» pode ver-se como um retrato nacional da prostração, e «A Vaga» é uma afirmação de elegância cosmopolita que nos aproxima da memória da «Belle Époque», à qual ficaram associados a exposição de 1900 e os anos anteriores à I Guerra Mundial. Com uma qualidade erótica rara na produção portuguesa, «A Vaga», de 1890, conjuga o corpo nu da mulher com a ondulação do mar, numa herança galante das Vénus dos Salões que, «lá fora», se renovava então no imaginário simbolista «fin-de-siècle», com maior ou menor decadentismo, e também nos estilos decorativos da Arte Nova, fundindo as formas humanas com os ritmos do mundo vegetal e aquático.
Teixeira Lopes e Fernandes de Sá são dois escultores do Porto, mestre e aluno, o primeiro discípulo de Soares dos Reis, e ambos tiveram formação parisiense, que era, na altura, comum à generalidade dos artistas nacionais. Dois outros artistas portuenses, António Carneiro e Aurélia de Sousa, também têm, mais adiante, presenças destacadas na exposição, mas ambas, por sinal, distanciadas da academização predominante nos meios artísticos lisboetas.
A mostra apresentada pelo Museu Gulbenkian associa-se às celebrações do anterior fim de século que têm tido lugar em diferentes capitais, interrogando um período de viragem histórica com fronteiras incertas e que articulou com grande efervescência a
eclosão de algumas marcas decisivas da modernidade (a electricidade, o automóvel, o cinema, o raio xis, a psicanálise...) com a crítica pessimista do progresso.
Partindo de um programa menos ambicioso, desde logo por ter definido um âmbito apenas nacional para a evocação do ano de 1900, a exposição assinala a efeméride
apresentando uma evocação panorâmica do quotidiano em Portugal, sinalizado nas suas várias componentes - política, economia, arquitectura e urbanismo, sociedade, educação, saúde e artes, em referências visuais ou escritas mais ou menos sintéticas -, a que se segue a recordação mais extensa da presença do país na Exposição Universal de Paris, embora só o panorama artístico levado ao certame tenha sido objecto de atenção detalhada. Os domínios coloniais, que tiveram pavilhão próprio, e também as
indústrias, o comércio, a pesca, a agricultura e inúmeras outras actividades fizeram parte da mesma embaixada e poderiam ter sido evocados num outro tipo de abordagem multidisciplinar.
A entrada no espaço da exposição é dominada pelas figuras do casal real. D. Amélia, numa ilustração de elegância cortesã, pintada pelo italiano Vittorio Corcos (1905), a que se adiciona a referência à sua acção benemerente na luta contra a tuberculose, e D. Carlos, ainda em início de reinado, num retrato de aparato do pintor Condeixa (1890), recordado como «inteligente e culto, praticante das artes e ciências, mas pouco interessado nos destinos de uma nação fortemente endividada». Ao lado de duas obras da sua autoria, que não chegam a representá-lo como artista de relativo mérito, que parece ter sido, figuram algumas das ementas por ele desenhadas para os jantares do Paço Real, ilustrando a muito criticada ociosidade régia - adiante se dirá que possuía em 1902 seis dos vinte automóveis que circulavam no país (e mais dois pertenciam à rainha-mãe D. Maria Pia).
Por tudo isso, o estado crítico da nação é logo denunciado através dos desenhos ferozes de Rafael Bordalo Pinheiro em nove capas de «A Paródia», desde o nº 1 de 17 de Janeiro até ao ano seguinte, cedendo já a autoria ao seu filho Manuel Gustavo: «A Política: a grande porca», «A Finança: o grande cão», «A Economia: a galinha choca», «A Retórica Parlamentar: o grande papagaio», até à figuração de «A Reacção» como «a grande toupeira».
À esquerda, uma antevisão de Lisboa no ano 2000, imaginando o que
teria sido o túnel para a outra banda e a modernização dos cais de Alcântara inspirada pelo emblema do progresso que continuava a ser a Torre Eiffel, vinda já da Exposição Universal de 1889.
Fotografias
À Lisboa do tempo chega-se pelo Tejo, numa aproximação à cidade e ao quotidiano popular (a Ribeira Nova, os transportes, os bairros pobres, os jogos e passeios ao campo, os cafés, os mercados, as lavadeiras de Caneças, etc.) que se faz através de ampliações fotográficas documentais, completadas por breves informações estatísticas e cronológicas, o que corresponde à opção por um tipo magazinesco de exposição, de maior impacto visual e acessibilidade fácil, mas que, paradoxalmente, deixa por conhecer a
fotografia produzida ao tempo, na realidade material das suas reproduções publicadas nas revistas e das provas originais de exposição.
Depois mostram-se alguns aparelhos e um interior do Photo Velo-Club do Porto - a fotografia praticada como um dos modernos «sports» -, mas continua a ignorar-se o lugar que ela ia ocupando entre as artes do tempo, o qual tem merecido uma atenção decisiva em recentes retrospectivas internacionais sobre a mesma época, como «1900», apresentada este ano pelo Museu de Orsay, em Paris, ou «Paradis Perdu: L'Europe Symboliste», de 1995, no Museu
de Belas-Artes de Montréal.
Só no final da exposição são visíveis, através das lentes próprias, alguns originais estereoscópicos de Aurélio Paz dos Reis, premiado na Exposição de Paris; mas o processo fora uma novidade na Exposição de Londres de 1851, vulgarizara-se durante o II Império e gozava então de uma última vaga de interesse junto dos amadores da visão em relevo.
Bordalo Pinheiro
Entretanto, a sociedade portuguesa é definida pelos tipos caricaturais de Rafael
Bordalo Pinheiro, que tinham uma longevidade significativa e passavam nessa altura do desenho humorístico à produção cerâmica das Caldas: o «Zé Povinho» (personagem criado em 1875, nas páginas de «A Lanterna Mágica», que mais de um século depois continua vivo
nos congressos partidários), a sua mulher «Maria da Paciência», «O Barriga» (um ventre com orelhas e cartola, também vindo de 1875, a representar a «fisionomia da política portuguesa» e depois, genericamente, os parlamentares) e «O Arola», caricatura do
brasileiro retornado. É ele o criador mais activo ao longo da exposição, bem representado por um conjunto muito diversificado de cerâmicas decorativas e, mais exoticamente, por uma baixela «gótica», desenhada para o visconde de São João da Pesqueira, de novo presente no sector dedicado ao teatro, com os figurinos de duas revistas e molduras esculpidas para fotografias de actores como oratórios profanos. Por último, é ainda Rafael Bordalo Pinheiro que ilustra as polémicas que envolveram a participação na Exposição Universal, visando o seu responsável operacional, o cônsul de Portugal em Paris, visconde de Faria, em desenhos e em louça humorística (um paliteiro de figura oscilante), e o desastre do «Saint André», o navio, ou «xaveco», que naufragou junto a Sagres quando regressava com grande parte das obras de arte enviadas a Paris.
Arte Nova
Novidade cosmopolita do fim de século, com limitada aceitação face ao gosto historicista e ruralista nacional, o espírito Arte Nova é assinalado num brevíssimo núcleo e tem vários apontamentos dispersos na exposição: o punho modelado por Teixeira Lopes para a espada oferecida a Mouzinho de Albuquerque em 1898, a decoração de
um gabinete do palacete Lambertini, um puxador de móvel desenhado pelo escultor e medalhista João da Silva, uma taça com libélulas e placas cerâmicas com borboletas de Rafael Bordalo Pinheiro, uma cortina de quarto de Raul Lino, mostrada juntamente com uma cómoda em castanho, pau amarelo e ébano, com puxadores de chumbo, executada
para os respectivos aposentos em casa do seu pai (1900-04), que no seu despojamento purista e funcional parece ser a peça mais «moderna» da exposição. Também no espaço dedicado à representação enviada a Paris, Raul Lino está presente com as fotografias sobreviventes de uma janela e de uma porta em que se reconhecem referências rústicas vernaculares e uma sugestão ornamental «jugendstill» nos arabescos das ferragens e das
vidraças, para além de se recordar o seu projecto derrotado para o pavilhão português.
Outros núcleos, de extensão variável, prestam atenção ao traje das elegantes da época, à literatura e à imprensa - com relevo para a morte de Eça de Queiroz - e, em especial, ao teatro, que ocupava então um largo espaço na vida cultural e social.
Aurélia de Sousa
Antes de se entrar no espaço atribuído ao que sobreviveu da embaixada artística levada à Exposição de Paris, reuniu-se um primeiro panorama não exaustivo da pintura portuguesa na viragem do século, de onde se destaca a larga representação de Aurélia de Sousa, que então se encontrava a estudar em França (1899-1902) e não participou na selecção. Na ausência do auto-retrato com casaco vermelho, que é a sua obra-prima e certamente o melhor da pintura portuguesa, datado de cerca de 1900, mas que se encontra em Nova Iorque na exposição «1900 - Art at the Crossroads», a pintora é
representada por quatro obras que a mostram como a figura mais promissora no início do século XX (embora o fechamento do meio nacional viesse a ser-lhe fatal, como quase sempre sucedeu): uma «Bretã-Auray», realizada durante a sua estadia em França, é um
estranho rosto fechado que se inscreve numa auréola de renda branca; «Retrato da Mãe da Artista», a que se atribui uma directa apropriação do exemplo de James Whistler («Harmonia em Cinzento e Negro», 1871); «À Sombra», uma cena de quotidiano familiar, de
exterior, coada por uma luminosidade azul; e «Paisagem - Margens do Douro», vista da Quinta da China, onde Aurélia de Sousa residiu depois de 1902, que é uma composição sensivelmente descritiva, muito diversa do naturalismo academizado que lhe era contemporâneo, atribuindo-se algum significado ao facto de ter sido adquirida por D.
Carlos.
Na sua vizinhança encontra-se Tomás Leal da Câmara, representado por dois curiosos retratos caricaturais pintados, dos primeiros tempos de um exílio que lhe traria projecção internacional como desenhador satírico, e, em especial, uma paisagem de Luciano Freire. «Desolação», de 1900, é também divergente do gosto preponderante pelo austero e melancólico intimismo do seu campo raso, definido por uma «pintura rápida» em que se pode reconhecer uma orientação simbolista, rara na pintura nacional (e que estava mais presente ainda na sua «Paisagem Bucólica», de 1896). A propósito, deve igualmente lamentar-se a ausência forçada de «O Perfume dos Campos», de 1899, que não sendo uma notável pintura contém a mais nítida notícia nacional da Arte Nova e é uma precoce denúncia da poluição industrial - e foi também seleccionada para a mostra sobre 1900 apresentada pela Royal Academy de Londres e, agora, pelo Museu Guggenheim.
No lado oposto da galeria, e da História, recorda-se a criação e a longa sobrevivência da Sociedade Silva Porto, que reuniu nesse mesmo ano os alunos de Carlos Reis «para desenvolver o ensino da pintura de paisagem no nosso país», custeando as despesas das «excursões de estudo ao campo». Juntou-se um quadrinho obscuro de Marques de Oliveira, «Anta, Arredores de Espinho», de 1900, e a anedota sentimental de «Raparigas ao Pé da Fonte», de Carlos Reis, com um um auto-retrato desenhado, de 1931, e ainda uma «Azenha» de António Saúde, já de 1941, ficando documentados os estereótipos de um ar-librismo academizado que teve relevância cultural para lá de toda a verosimilhança cronológica.
Entretanto, a montagem optou por fazer a entrada no espaço relativo à embaixada artística enviada à Exposição de Paris através de uma galeria com obras de referência simbolista, valorizando uma pista da modernidade possível no Portugal da época, enquanto a representação seguinte é dominada pela pesada conjunção do academismo salonista com o naturalismo ruralista. Mas são também as vicissitudes do naufrágio e da exposição «1900 - Art at the Crossroads» que marcam esse espaço: o tríptico «A Vida», de António Carneiro, mostrado ainda incompleto em Paris e exposto agora em Nova Iorque, teve de ser substituído por um pequeno estudo de 1899-1901 e pelos desenhos preparatórios; o original de «Jesus no Deserto», de Veloso Salgado, uma imensa tela de três metros de altura por quatro metros e quarenta centímetros de comprimento, perdeu-se no naufrágio do «Saint André», pelo que se recorreu a um estudo prévio pintado em Florença e mostrado no Salon parisiense de 1892 e a uma réplica de menor formato pintada em 1922.
Mais à frente, o panorama é dominado pela retórica cenográfica dos temas históricos, o erotismo «pompier» de pretexto alegórico, o retrato geralmente convencional, o naturalismo convertido ao folclorismo das cenas de género - direcções que facilmente se integravam no panorama salonista na «Décennale», a retrospectiva que acolheu no Grand Palais, durante a Exposição de 1900, as belas-artes dominantes e o gosto oficial do tempo. É uma produção frouxa, mesmo quando é tecnicamente apurada, volúvel nas suas dependências eclécticas e sempre de excessiva obediência francesa, alheada das recentes inovações sintetistas ou neo-impressionistas, mas também sem a brilhante efervescência modernizadora de alguns naturalismos cosmopolitas, sem o rasgo dos realismos sociais ou de algumas novas pinturas nacionalistas, que por essa altura se manifestavam na Polónia, na Finlândia, em Espanha e noutras periferias, como têm mostrado as retrospectivas recentes. Ao contrário do atraso ou do isolamento que por vezes se atribui à arte portuguesa, imperavam os mimetismos parisienses e a falta de identidade nacional.
De José de Brito exibem-se duas obras que há muito tempo não eram expostas: «Mártir do Fanatismo», de 1895, do Museu do Chiado, e «A Fábula e a Verdade», do Museu Soares dos Reis, cuja importância (reduzida) reside nas representações ousadas do nu feminino. Columbano, então distinguido com uma medalha de ouro e a Legião de Honra, está presente com «Santo António», ficando ausente, por se encontrar também em Nova Iorque, «A Chávena de Chá», mais justamente famosa. Veloso Salgado, com «Vasco da Gama na Presença do Samorim», que vencera o concurso nacional de pintura promovido na Sociedade de Geografia no ano do quarto centenário da descoberta do caminho marítimo para a Índia, foi igualmente distinguido com uma primeira medalha, por esta e por outras obras; apesar da sua teatralidade convencional e do orientalismo de salão, é tida como o melhor exemplo de pintura de História praticada em Portugal. Carlos Reis, que também foi vítima do naufrágio, comparece com um estudo para «Manhã em Clamart» e com «Milheiral», obra de substituição pintada já em 1911. Malhoa, que entre 1897 e 1912 foi presença regular no Salon de Paris, tem expostas duas telas distinguidas em 1900 (segunda medalha): «As Padeiras, Mercado de Figueiró», de 1898, e «A Corar a Roupa», esta vindo expressamente do Museu do Rio de Janeiro. De José Júlio de Souza Pinto, pintor instalado em Paris desde 1880, mostra-se «O Barco Desaparecido», de 1890, e «A Apanha da Batata», de 1893, que foi no ano da Exposição adquirido para o Museu do Luxemburgo e faz hoje parte da colecção do Museu de Orsay, ambos exemplificativos da dependência do gosto sentimental de Bastien-Lepage.
A mostra, que foi coordenada por Maria Rosa Figueiredo, conservadora do Museu Gulbenkian, e teve projecto de montagem de Paul Vanderbotermet, será acompanhada pela edição de um extenso catálogo, em que se incluem numerosos textos disciplinares, das artes cénicas ao trajo, passando, por exemplo, pela educação, os estudos femininos, a política e economia, a saúde e assistência, para além das artes canónicas. Entretanto, está disponível um desdobrável ilustrado que é pouco explícito quanto a itinerário e programa da mostra, substituindo a sinalização das obras principais por uma montagem generalista de informações históricas.
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