Razões várias que se foram conjugando levaram a interessar-me por um campo antes desconhecido. Não só desconhecido como em si mesmo e reconhecidamente enigmático: a arte popular africana, obviamente com muito diversas manifestações localizadas (e sem invocar uma qualquer essência africana). Tinha havido alguma aproximação aos pintores populares do Congo, depois o desafio de uma colecção de artistas "100% africanos" (a col. Jean Pigozzi no Guggenheim de Bilbau - www.caacart.com, vista em 2006 , aqui ), e surgiram depois outras oportunidades.
A classificação como popular não simplifica nada, e não se sabe bem o que delimita, para além de significar que os artistas que assim são designados não tiveram formação académica reconhecida como tal. Mas, de facto, os artistas europeus que se formavam nos ateliers profissionais, de mestres familiares ou não, legitimados corporativamente, antes da generalização das academias, encontravam-se em circunstâncias muitíssimo semelhantes, embora, se se designaram como "primitivos" os pintores dos séculos XIV-XVI, não seja legítimo chamar-lhes populares. Primitivos europeus e populares africanos têm também em comum trabalharem para o mercado, satisfazendo encomendas de patronos ou intermediários, o que para os primeiros se aceita como meritório, por se tratar de satisfazer cortes religiosas e civis, enquanto para os segundos se usa a expressão depreciativa de "arte de aeroporto" (arte para turistas, desde meados de 1950) por o seu consumo ter deixado de ser aristocrático e ser agora também ele popular - não popular no seu contexto de origem, democratizadamente, mas sim popularizado em contextos culturalmente distantes. Mais do que uma perspectiva eurocêntrica, é uma abordagem elitista.
O caso mais obviamente enigmático no campo da arte africana recente, a que deixou de ser ritual e/ou "primitiva" e passou a ser objecto de um largo interesse internacional, que não se pode dizer exactamente popular mas convive mal com o coleccionismo erudito de arte contemporânea (e também do de arte tradicional africana, por maioria de razão), é o que respeita à escultura maconde. Não é tradicional, não é ritual, é popular por não ser erudita, e não é "arte negra" por se destinar ao consumo estético de brancos. É exactamente como um enigma que se lhe refere uma especialista como Sidney Littlefield Kasfir, na sua Arte Contemporânea Africana, Thames & Hudson (ed. original de 1999, Londres). E é surpreendente a proliferação de publicações e polémicas a seu respeito desde que a escultura maconde moderna surge como objecto de mercado e como categoria, em 1966.
O facto de se tratar de uma história muito breve que, depois dos primeiros contactos regulares de europeus com populações macondes nos anos 20 do séc. XX, conhece logo nos anos 30/40 o estabelecimento de uma primeira produção artística destinada ao consumo colonial com características próprias, já diferentes dos objectos de uso tradicional, dá uma maior nitidez aos problemas envolvidos, e que tanto têm a ver com a hipótese de uma criatividade popular ou própria de um grupo populacional específico como com os efeitos ou as potencialidades de um mercado, de uma mercantilização, que lhe é culturalmente alheio/a. Encontrar e satisfazer um mercado, ter origem no estímulo de um mercado, existir intrinsecamente ligada a um mercado não é um estigma, mas pode ser um preconceito, que não resiste à história da arte.
Para já, aqui ficam fotografias que algumas peças intrigantes, que fazem parte da produção para o mercado colonial português (anos 60/70?, adquiridas em Lourenço Marques?) e que parecem ser peças menos banalizadas ou estereotipadas do que as de circulação mais corrente:
1 - Gorila?, pau preto (embutidos em marfim?), altura 14 cm (não existem gorilas em Moçambique)
"Pensador", pau preto?, alt. 26 cm. É uma peça que se aproxima dos estilos modernos, mantendo no entanto a relação referencial com a cultura do colonizador
? (objecto decorativo?), c. 21 x 42 x 21 cm
algumas edições:
1. Esculturas do povo Maconde - Álbum / Instituto de Investigação Científica de Moçambique. Lourenço Marques, 1963. "Álbum editado pelo Instituto de Investigação Científica de Moçambique por ocasião do cinquentenário do Museu Dr. Álvaro de Castro" (actual Museu de História Natural, Maputo). Tipografia e Litografia Académica. Ilustrações, texto "A arte do povo Maconde", não assinado. (N. pag.)
2. Art Makondé, tradition et modernité, AAFA, Paris, 1989:
3. Projecto Arte Maconde, Ministério da Cultura, Maputo 1999
5. Dominique Macondé, Mozambique - La Réunion. Réunion, 2006
6. A criação da escultura maconde moderna:
J. Anthony Stout, Modern Makonde Sculpture, Kibo Art Gallery Publications, Nairobi, Kenya, 1966
#
ver: Paolo Israel, « Kingdon, Zachary. — A Host of Devils. The History and Context of the Making of Makonde Spirit Sculpture », Cahiers d'études africaines, 176 | 2004, [En ligne], mis en ligne le 17 avril 2008. URL : http://etudesafricaines.revues.org/index4878.html . Consulté le 18 mars 2010.
"Le « mystère de la sculpture makondé » (Kasfir), replacé dans le contexte historique et culturel qui lui est propre, n’en est plus un (considérant néanmoins que toute invention artistique contient une partie de mystère) — la naissance de cet art étant vue comme une forme de résistance au colonialisme portugais, et son développement comme une réponse aux défis de la situation d’émigration en Tanzanie." (Antes o enigma que o simplismo explicativo que não explica nada)
Comments