Arquivo EXPRESSO Actual 21-04-2000
Crónica "Exta-catálogo" nº 6 (e última)
Warhol em Serralves
"Arte de massas"
«Hoje, o artista é contemporâneo quando se transforma num produtor de vanguarda de massas. É um sub-humano e um pós-humano, cuja destreza reside na capacidade de se adequar à 'moda' e para o qual a fantasia não é mais do que um armazém do qual surge o negócio» - Germano Celant, catálogo «Andy Warhol: a Factory»
«Acabada a economia política, só existe a política económica escorada na pornografia da quantidade» - Vicente Verdú, «A cultura emigrou de si própria», in suplemento «Século XX», «Público-El País», 17-4-2000
O NOVO museu, dito de arte contemporânea, mostra a sua ambição: bater recordes de público, mesmo que à custa de festas nocturnas semanais com «disk jokeys» e bebidas. Trata-se, com Andy Warhol, de afirmar o museu como um lugar da «cultura de massas dos nossos dias», a par da televisão e dos «shoppings». O propósito não tem nada a ver com a velha ideia de democratização da arte e da cultura, ao contrário do que pensarão os mais ingénuos, porque essas duas palavras vão perdendo o sentido que lhes deu a tradição iluminista e não ganharam qualquer outro. A ambição é mesmo a de destituir de qualquer significado as palavras arte e cultura, continuando a usá-las como meras marcas de um incerto sector de actividades, plenamente integrado no universo do espectáculo da política, do consumo e do «entertainment». Se as imagens de Warhol não se distinguem das da circulação mediática, da moda e da publicidade, porque é que o consumo do museu pelas «massas» não se há-de medir por recordes?
Vem tudo explicado no texto de apresentação da exposição de Serralves, uma só página a abrir o catálogo - que não é um catálogo, onde às imagens expostas se juntem textos informativos e analíticos, mas só um livro de bonecos. Diz-se: «Andy Warhol é, na segunda metade do nosso século, um dos artistas que transformam o mundo da arte, buscando a sua indistinção em relação ao mercado e aos mitos que a fundem na sociedade contemporânea». «Indistinção», a palavra é essencial. Depois, a frase «os seus ícones desconstroem as pretensões simbólicas que se lhes pretendam associar para funcionarem como valores de troca e de uso que definem uma comunidade» já pode ser só um simulacro de raciocínio (não há ícones sem carga simbólica).
O filósofo norte-americano Arthur Danto escreveu que o facto de as obras - de arte - de Andy Warhol, em especial as Caixas Brillo, expostas em 1964, não poderem distinguir-se sem prévio aviso (ou seja, sem se apresentarem num palco institucional) dos banais objectos comerciais que reproduzem significou o fim do que ele chama a fase histórica da arte ocidental. Danto valoriza-as por isso mesmo, desinteressando-se de pensar uma estética que procure sustentar-se sobre a possibilidade dos juízos de qualidade argumentados (que não são absolutos nem nunca foram imutáveis). Porém, outros autores, que não pretendem ser «pós-históricos», continuam a discutir a qualidade do artista Warhol: apreciam o desenhador comercial do início da carreira, reconhecem o intérprete eficaz de uma conjuntura artística chamada «Pop Art», sublinham a atracção pela morte presente nas suas imagens («tudo o que faço está associado com a morte», reconheceu ele). Desvalorizam o retratista mundano com a marca Warhol, que sobreviveu à rápida «popularização» com evidentíssimas dificuldades criativas.
O caso Warhol é paradigmático. A sua «Fábrica» de imagens é pioneira da recente indústria de museus e exposições com o logotipo Guggenheim. Diz a «apresentação»: «Enquanto produtor de imagens, Warhol é igualmente um produtor de acontecimentos. Das possibilidades oferecidas pela reprodutibilidade técnica até à exploração da série e da repetição, Warhol usa a arte, a moda, a publicidade como meios de afirmação de uma cultura urbana, 'pop', mediática e pragmática, onde o evento resulta de uma estratégia de fusão recíproca entre as referências de uma cultura erudita e de uma cultura popular.» Essa «fusão» processa-se através da indistinção, pela destituição dos valores culturais «eruditos» reconhecidos na literatura e nas outras artes, por degradação e massificação das culturas populares (no plural), pela indiferenciação de todas as obras de arte.
O texto continua: «Projectos de revista, grupos 'pop', filmes e fotografias associam anónimos e famosos no laboratório-observatório de alguns dos mais relevantes produtos de um 'star system' que indistingue o 'glamour' social da subcultura de rua.» O que se oferece nesta mega-exposição é a remitificação de um episódio nova-iorquino, usando o decadentismo chic da Factory para desqualificar como espectáculo o complexo universo da contra-cultura do seu tempo, transformando toda a oposição em indiferença. A produção de Warhol, repetida, banalizada, comercializada até à exaustão (a Fundação que tem o seu nome está atenta), é apresentada de modo a inviabilizar o sentido crítico e a distinção entre obras mais ou menos conseguidas - a discussão sobre se são ou não obras de arte é um logro oferecido de bandeja aos incautos.
É certo que em parte alguma da «apresentação» se pretende que o Warhol produtor de imagens e de acontecimentos seja um grande artista. O que aí se diz é que «Warhol se transforma numa das referências fundamentais de uma cultura popular de massas ao longo dos últimos quarenta anos». O Museu prometido, no seu projecto e designação, é só galeria de exposições. A Arte Contemporânea quer passar por «cultura popular de massas». Este jogo de enganos, com «'glamour' social» e «subcultura de rua», não é a actualidade internacional, ao contrário do que se pretende fazer crer.
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