"Inventário do mundo"
A COLECÇÃO DO IMPERADOR
Arquivo Fotográfico de Lisboa (Até 14 de Outubro)
PEDRO de Alcântara João Carlos Leopoldo (...) de Bragança e Habsburgo tinha 14 anos quando a 17 de Janeiro de 1840 assistiu à demonstração da invenção do daguerreótipo feita pelo padre francês Louis Compte junto ao Paço Imperial do Rio de Janeiro. D. Pedro II, que tinha seis anos à data da abdicação do seu pai, D. Pedro I e IV de Portugal, iniciou o respectivo reinado alguns meses depois daquele episódio, quando a 23 de Julho foi proclamada a sua maioridade, e manteve durante toda a vida (foi destronado em 1889 e morreu em Paris dois anos depois) um grande interesse pela fotografia.
Louis Compte, capelão do navio-escola francês L'Oriental, seguiu viagem para Montevideu e Valparaíso, continuando a apresentar a fotografia nas cidades em que fez escala (a divulgação pública do processo fotográfico tinha ocorrido em Paris a 19 de Agosto de 1839). D. Pedro mandou adquirir imediatamente uma câmara de daguerreotipia e terá sido o primeiro brasileiro a tirar uma fotografia. Da sua produção como fotógrafo amador pouco se conhece, e seria enquanto impulsionador das utilizações práticas da fotografia, mecenas e coleccionador, que a sua acção se tornou relevante, como comprova a exposição trazida a Lisboa.
Entretanto, recorde-se que Hércules Florence, um desenhador francês radicado em Campinas (estado de São Paulo), chegara em 1833 à descoberta de um processo de impressão fotográfica, mas o isolamento em que se encontrava fez com que só mais de um século depois o seu nome se acrescentasse à lista dos pioneiros (também terá sido o primeiro a empregar o termo fotografia, logo em 1834). Na exposição está presente com uma amostra de «papel inimitável» para «impressão simultânea de todas as cores», outra das suas invenções.
Para D. Pedro II, a dedicação à fotografia associava-se a um interesse enciclopédico por todas as áreas da cultura e do progresso científico e técnico do seu tempo, durante o qual assistiu, por exemplo, à construção das primeiras vias férreas, à instalação do primeiro cabo submarino e à introdução do telefone. Para além das instituições que fundou ou protegeu, outras colecções pessoais, a sua biblioteca, o museu mineralógico, o herbário, etc., ficaram no Brasil a testemunhar a vastidão de interesses de um monarca de quem se dizia, ao que parece injustamente, que praticou a devoção aos livros mais assiduamente que os negócios do Estado, num país ainda esclavagista e dominado pelos grandes proprietários rurais. Gilberto Freyre comparou-o uma vez a um pastor protestante oficiando num templo católico.
Depois da proclamação da república no Brasil, o espólio fotográfico de D. Pedro foi destinado pelo próprio à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, embora se tenha também fragmentado tematicamente por outras instituições. Cerca de 25 mil imagens constituem actualmente a Colecção do Imperador - a que este atribuiu o nome da sua mulher, D. Thereza Christina Maria - e incluem-se num acervo total de 400 mil fotografias produzidas maioritariamente no século XIX. Esquecida durante muitas décadas, a colecção tem vindo a ser estudada metodicamente desde 1989, no âmbito do chamado Projecto de Preservação e Conservação do Acervo da Biblioteca Nacional - Profoto. É o resultado desse trabalho em curso que o Arquivo apresenta através de cerca de 160 fotografias, retomando uma primeira exposição levada a cabo em 97 no Brasil e em Buenos Aires. A sua vinda a Portugal foi uma iniciativa do Centro Português de Fotografia, que a apresentou na Cadeia da Relação do Porto e editou o catálogo original. Através da Internet (www.bn.br/directrizes/biblioteca/acervo/icon/profoto.htm) pode aceder-se à bibliografia do Profoto e a um catálogo que já conta com o registo de 6000 fotografias.
Incluindo apenas provas originais - que raramente se podem ver em Portugal, porque as colecções são escassas e os especialistas preferem reimprimir negativos -, mas expondo também livros impressos na época, a mostra é uma notável apresentação da realidade material da fotografia e da diversidade das suas direcções e usos ao longo das décadas de 50 a 80 do século XIX, quando o pioneirismo dava lugar à universalização e à industrialização da sua prática (na década de 60, já havia 30 estabelecimentos ou estúdios instalados no Rio de Janeiro). A adopção das chapas negativas de colódio seco, em 1855, tinha facilitado decisivamente o respectivo transporte e a operação de tomada de vistas, e à utilização do papel albuminado, a partir de 1847-50, seguir-se-ia depois de 1874 o uso do brometo de prata, 40 vezes mais sensível e permitindo o instantâneo. À comercialização generalizada do retrato e das vistas de países e habitantes exóticos associava-se o crescente uso científico da fotografia conjugada com o microscópio e o telescópio. Na exposição predominam os papéis albuminados, com as suas cores acastanhadas ou amarelecidas, muitas vezes colados nos seus cartões originais legendados e decorados (notáveis, por exemplo, a montagem de 12 imagens do Campo da Aclamação editada por Marc Ferrez em 1880, ou a grande Photographie Aérostatique par P. Nadar (filho), tirada a 800 metros sobre Versailles, em 1886 (as primeiras imagens de Nadar tiradas de um balão datam de 1858). Panoramas, «cartes de visite», estereogramas para a visão em relevo, páginas de álbum ou fotos publicitárias nos seus cartões originais impressos estabelecem uma variedade de processos e produtos que é em si mesmo aliciante.
Exposição e catálogo organizam-se segundo percursos temáticos através das aplicações e áreas de interesse da fotografia no século XIX: astronomia, música e artes cénicas, viagens, educação, ciências, artes plásticas e arquitectura, agricultura, indústria e mineração, exposições, medicina e saúde pública, ciências e expedições, engenharia (diques, portos, rodovias, ferrovias), urbanismo, índios e etnologia, escravos e colonos, forças militares e guerra, e penitenciária alinham-se na ordenação do catálogo, embora a localização de cada imagem seja por vezes aleatória.
Enciclopédica como os destinos da fotografia, e sem pretender ser uma história da fotografia mundial, a selecção inclui alguns grandes nomes que ficaram associados à exploração fotográfica do globo e logo ao grande comércio do turismo visual, como Roger Fenton (com a Ponte do Rio Dnieper, Kiev, em construção, de 1854 -55), Francis Frith (Jerusalém vista do Monte das Oliveiras, 1857-57), Félix Bonfils (o Muro das Lamentações em Jerusalém, do álbum Souvenirs d'Orient), Antonio Beato (o Templo de Amon em Karnak), a que se juntam imagens do Egipto de Pascal Sébah e outras anónimas. Mas mais do que as autorias, em muitos casos não identificadas e de empresas, importam as imagens que dão testemunho da história do século XIX: a guerra da tripla aliança do Brasil, Argentina e Uruguay contra o Paraguay (1864-70), a Comuna de Paris, as Exposições Universais, a expedição africana de Brito Capelo, Serpa Pinto e Roberto Ivens (1877 - mas mostrando apenas a bagagem dos expedicionários), a construção dos canais do Suez e do Panamá, as escavações de Pompeia, etc.
E também as fotografias que se associaram à procura de novos conhecimentos científicos, à exploração dos territórios ainda desconhecidos em vistas «d'après nature», ao mapeamento das espécies vegetais, das raças humana e das doenças, ao registo das grandes construções técnicas que mudavam o mundo. Particularmente notáveis são as fotografias astronómicas, que foram um dos grandes interesses do Imperador, representadas por uma belíssima prova de carvão de 49x48 cm, uma Lua Cheia, a partir de um negativo de Henry Draper; pela fotografia da Via Láctea dos irmãos Prosper e Paul Henry, do Observatório Astronómico de Paris, 1885; ou o cometa B 1881, captado pelo astrónomo Jules Janssen, que aperfeiçoara o «revolver fotográfico» no Observatório de Meudon, numa reprodução fotomecânica (woodburytipo) a partir do desenho obtido dos negativos originais.
No imenso «puzzle» que é a exposição, também se pode sinalizar uma parte da história da fotografia no Brasil, com a sua dupla influência francesa e alemã. Desde Victor Frond, de quem não se conservam fotografias mas se mostra a vista da baía do Rio em 1858 gravada em Paris para o álbum de litografias Brazil Pittoresco; August Frisch, que primeiro penetrou na floresta amazónica para fotografar os índios, em 1865; o suíço George Leuzinger, fotógrafo e editor que teve uma importante galeria comercial no Rio; Otto Louis Niemayer, que registou a instalação da Colónia Dona Francisca (Joinville) na Província de Santa Catarina, em 1866; Revert Henrique Klumb, com uma óptima fotografia de um dique em construção, de 1859-62. Até Augusto Riedel e, em especial, Marc Ferrez, o grande fotógrafo do século XIX brasileiro e pioneiro do cinema.
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