Arquivo, Expresso 06-05-2000
"Identificação de um país"
OLHARES MODERNISTAS
Museu do Chiado (Até 28 Junho)
VARIADAS histórias se abrigam sob a designação de modernismo, em correspondência, pelo menos, com a diversidade das situações regionais em que, nos finais do séc. XIX e nas primeiras décadas do séc. XX, se confrontam academismos localmente estabelecidos com dinâmicas de renovação que se reivindicam da mudança dos tempos. Se, mesmo nas grandes metrópoles, a modernidade não pode sintetizar-se num aspiração unitária e linear, o caso brasileiro é particularmente significativo da pluralidade modernista.
No Brasil, o modernismo é ao mesmo tempo internacionalista e nacionalista (ou melhor, nativista), anti-colonial, e o interesse pelos «primitivos» (os índios e negros bem reais no país) não se confunde com o deslumbramento pelo exotismo descoberto nos ídolos tribais. A vontade de futuro (que não pode ser amalgamada com futurismo) fazia acompanhar a renovação formal com a redescoberta de um passado oculto na colonização, e a abertura cultural ao exterior associava-se ao inquérito sobre a identidade própria, tomando por mito fundador a deglutição pelos índios do bispo português Sardinha, naufragado nas costas brasileiras em 1554. Devorar o outro vindo de fora com a sabedoria autóctone do ritual antropofágico seria a palavra de ordem do manifesto de Oswaldo de Andrade, em 1928, depois com reactivação tropicalista em finais da década de 60.
Modernismo tardio, o brasileiro encontra-se já com o clima cultural dominante na Europa dos anos 20, que é mais o do chamado regresso à ordem do que das primeiras vanguardas, aproximando-se assim de outros contemporâneos realismos nacionais e vivenciando uma síntese de orientações desencontradas, expressionismos vários, cubismo disciplinado da «art deco» e surrealismo.
Organizada em quatro secções temáticas e genericamente cronológicas que cobrem um itinerário que vai de 1915 ao início dos anos 40 - «Princípios», «Explosão Tropical», «Urbanidades» e «Reivenção da História» -, a mostra é um panorama abreviado e didáctico que insere as criações visuais no contexto literário e cultural do tempo, acompanhando a interdisciplinaridade própria das manifestações modernistas brasileiras.
No primeiro espaço destaca-se o papel pioneiro de Anita Malfati, com trânsito anterior pela Alemanha e Estados Unidos, cuja exposição de 17 gerou os primeiros escândalos - leia-se a crítica anti-expressionista de Monteiro Lobato contra os que «vêem anormalmente a natureza. As obras do escultor Victor Brecheret, com formação em Roma, e de Vicente Rego Monteiro dão conta da transição prudente e da informação sincrética que ainda preside à Semana de 1922, sem que se chegue a revelar a originalidade posterior da obra do segundo.
É em «Explosão Tropical» que se observa a viragem para a descoberta da realidade brasileira, estimulada pela visita de Blaise Cendrars e pelos estudos parisienses de Tarsila do Amaral, em que predomina a lição de Léger. Em O Lago, a paisagem molda-se com um colorido vibrante e uma ingenuidade mágica, enquanto os estudos desenhados para A Negra e Abaporu (que ilustrou o «Manifesto Antropófago») recentram o nacionalismo modernista brasileiro sobre as culturas étnicas. Com Lasar Segall, artista de origem lituana, com fortes relações com o expressionismo alemão, idênticos interesses inscrevem-se na tela O Bananal e nos projectos decorativos realizados sobre a fauna local.
São os mesmos dois artistas que logo a seguir testemunham que não é só uma visão edílica e primitivista que marca o modernismo brasileiro, mas também a observação da transformação do país sob a dinâmica do crescimento económico e urbano. As excelentes gravuras de Lasar Segall tomam por tema os novos arranha-céus de São Paulo e as crescentes aglomerações de deserdados que envolvem as cidades - significativamente, em Favela, de 1930, o espaço ogival do morro ocupado pelos negros é idêntico ao do superlotado convés do seu famoso Navio de Emigrantes (1939-41). Também as Meninas de Fábrica, na xilogravura de Livio Abramo que serve de aproximação à tradição brasileira da gravura de intervenção social, e a Rua das Mulheres, de Emiliano Di Cavalcanti, são duas notações simétricas sobre o progresso ambíguo da sociedade moderna.
A secção final é dominada pela presença de Portinari, já precedida pela exibição do Chorinho (1942) da colecção do próprio Museu do Chiado. Uma sequência de desenhos retoma o tema da antropofagia, enquanto o estudo Brasil, de 1953-61, documenta a ambição de sintetizar a história nacional.
Entretanto, o catálogo é um bom complemento da mostra, com diversos estudos sobre o modernismo brasileiro e as relações com Portugal, nomeadamente um inventário de contactos e trânsitos estabelecido por José-Augusto França, que no entanto não refere a longa presença do brasileiro Waldemar da Costa.
Nota: A exposição ocupa o espaço do museu atribuído à colecção do século XX português, já antes deslocada para se acolher uma anterior mostra. Não se deverá entender como um facto banal essa suspensão da função essencial que se espera de um museu, mas antes como uma escandalosa demonstração de que urge proceder à ampliação das suas instalações. Autorizada pelo acordo para fazer sair a polícia do edifício, já com previstas comparticipações comunitárias, só os impasses políticos explicam o actual silêncio em torno da questão.
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