"Dever de memória"
CAPA: CARA A CARA
Museo Extremeño e Iberoamericano de Arte Contemporáneo, Badajoz (Até 30 de Outubro)
É ADMIRÁVEL a forma como a Espanha esquece e enfrenta a memória terrível da Guerra Civil de 1936-39. A apresentação das fotografias que Robert Capa realizou desde o princípio ao fim do conflito, nas frentes de batalha e nas cidades arrasadas pelos cercos e bombardeamentos, acompanhando ainda as multidões de refugiados que, após a derrota, atravessaram a fronteira francesa, é mais um passo desse encontro tão penoso como necessário de um país consigo mesmo.
Exibidas em Madrid no início de 1999 - onde as encontrou a peregrinação anual à Arco - e em seguida colocadas em itinerância, elas estão agora em Badajoz, no museu que se ergue no local da antiga cadeia. Badajoz, rapidamente ocupada pelas tropas vindas de África, é, aliás, um dos lugares emblemáticos da violência dessa Guerra, graças aos milhares de fuzilados às ordens do general Yagüe, logo em Agosto de 1936. («Naturalmente que os matámos», reconheceu ele a um repórter norte-americano. «Ia levar 4000 prisioneiros vermelhos na minha coluna, tendo de avançar a contra-relógio? Ou ia deixá-los na retaguarda para Badajoz se tornar vermelha outra vez?»)
Poderia questionar-se o que significa usar o museu de arte contemporânea como lugar de evocação da tragédia da Guerra Civil - notando também que nenhum cartaz, na cidade e no exterior do museu, promove a exposição. Não é irrelevante que nesse lugar específico a informação militante praticada por Capa deslize inevitavelmente para o estatuto de arte, até à ambiguidade extrema de se atribuir, no catálogo, fazendo o paralelo com Guernika, a designação de obra prima à Morte de um Miliciano, como Capa a surpreendeu em Cerro Mariano, na frente de Córdova, a 5 de Setembro de 1936, quando nenhuma outra imagem anterior dera a ver assim a morte de perto e em directo, na defesa de uma causa. Talvez tudo isso, e em especial esse espaço próprio do espectáculo da arte, tenha a ver com a afirmação feita por Paul Virilio, num colóquio dos Encontros de Arles de 1998 (Image et Politique, ed. Actes Sud), de que «não existe política imperdoável», defendendo que «a democracia se opõe a dois inimigos: a ditadura, é claro, mas também, o que muitas vezes se esquece, a metástase social, a guerra civil».
A Espanha mostrada por Capa - que, logo em 1938, levava a revista inglesa «Picture Post» a chamar-lhe «o melhor fotógrafo de guerra do mundo» - continua no centro dos debates sobre a fotografia documental e de intervenção, mesmo se a experiência fotográfica da morte mudou no Vietname com Don McCullin e depois com os retratos das vítimas de Pol Pot. Nas suas imagens da resistência antifascista em Espanha, de que dependia então a sorte da Europa, Capa é testemunha e é também, claramente, autor. Está implicado nos acontecimentos (apoia um dos lados do conflito, o único que fotografa) e interpreta-os através de uma concepção do mundo (um projecto estético?) que se manifesta no seu modo de fotografar, e será algo diferente de um «estilo»: a extrema proximidade da acção, enfrentando os mesmos perigos que os milicianos que correm debaixo do fogo com as suas armas (o fotógrafo dispara com a sua câmara, outra arma?); a opção por testemunhar as movimentações colectivas e anónimas, que o leva a ignorar todo o cerimonial dos políticos (totalmente ausentes na exposição); a atenção à intimidade dos rostos, que faz das suas fotografias de guerra uma galeria de retratos, como o título «Capa: Cara a Cara» claramente indica.
É através desses rostos e dos olhares trocados com o fotógrafo, mais do que pelas imagens das batalhas, que uma história nos é contada, sem neutralidade possível: a euforia dos alistamentos iniciais, com relevo evidente para a presença activa das mulheres; o sofrimento impotente dos que fogem aos bombardeamentos; a raiva contida dos brigadistas desmobilizados por Stalin, em 38, ditando o destino da guerra; no final, o olhar acusador do velho músico refugiado.
Entretanto, tratando-se de uma exposição sobre a Guerra de Espanha vista por Robert Capa, é a própria montagem que o identifica desde logo não só como autor mas igualmente como pessoa: é também de uma aventura pessoal que se trata, iniciada com a juventude dos seus 23 anos e associada à relação com a também refugiada e fotógrafa Gerda Taro, que morre tragicamente na frente de Brunete em Julho de 1937. São as grandes ampliações das fotografias do par enamorado (num café de Paris, em 1935) e de Capa filmando, numa foto atribuída a Gerda Taro, que enquadram a entrada da exposição - não quaisquer imagens emblemáticas da Guerra Civil.
Essa dupla identificação de Robert Capa como autor e como pessoa não introduz qualquer distanciamento face ao carácter político e à intensidade expressiva das imagens; pelo contrário, ela assinala-nos a dimensão de intimidade que preside à emoção do fotógrafo e, por isso, também a que se estabelece, ou não, no confronto pessoal dos espectadores com as imagens. O «tudo depende de quem olha», como afirmava Eugene Smith, outro grande repórter, implica igualmente o observador. Entretanto, o texto de parede que convida os visitantes a ajudarem à identificação dos muitos rostos ainda anónimos e o vídeo que no início do itinerário divulga a história sintética da Guerra Civil, fazendo com que o som das canções de intervenção do tempo invadam as galerias, avolumam uma experiência política e inevitavelmente estética que pode não ser facilmente suportável.
A mostra é uma selecção de cerca de 130 de entre as 205 reimpressões de fotografias da Guerra Civil que foram doadas a Espanha e ao Museu Rainha Sofia por Cornell Capa, irmão de Robert Capa e director fundador do Centro Internacional de Fotografia de Nova Iorque, que administra o espólio do fotógrafo. É acompanhada por um catálogo exemplar publicado pela Aperture (5500 Pes.), onde ao estudo científico do espólio se juntam importantes textos sobre Capa e sobre o contexto espanhol em que interveio.
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