"Mundos paralelos"
JOÃO CUTILEIRO
Centro Cultural e de Congressos de Aveiro (Até 12 de Maio)
NA SEGUNDA exposição de um ciclo denominado «Arte do Século», inaugurado com Júlio Resende, a Câmara de Aveiro apresenta a escultura de João Cutileiro sob uma inédita abordagem temática. Mostram-se os seus «Guerreiros» mais recentes, uma série homogénea de 27 peças de 1998/99, outros tantos corpos femininos, muito diversificados nos formatos e no tratamento formal, distribuídos por vários anos de trabalho (1993 a 1997, com uma ou duas excepções pontuais), e ainda, isolada, uma escultura de maior vulto, Leda e o Cisne, 1996, de placas de mármore recortadas, como sucede noutras obras monumentais dos últimos anos (o Lago das Tágides, por exemplo).
Sob o título «Macho - Fêmea», a exposição não é exactamente um sumário antológico que sistematize a relação da escultura de Cutileiro com a forma humana, até porque se trata apenas da exibição de obras recentes. No entanto, a configuração temática do projecto, montado em dois espaços autónomos e comparativos, é indicativa de algumas das linhas que atravessam a sua obra e, desde logo, de uma diferenciação radical na abordagem dos dois sexos.
É rara a presença do corpo masculino na escultura de Cutileiro, para além dos retratos simbólicos, como D. Sebastião e Camões, da sua metamorfose na figura compósita do cavaleiro, de alguns torsos escassos e de genitália avulsa, embora o corpo do homem também tenha comparecido como parceiro em algumas situações mais directamente sexualizadas, figurações de cenas de amor. Explicitamente associada a criação escultórica à energia sexual e esta ao prazer, resta constatar a preferência do alvo feminino.
Por outro lado, o homem surge desde muito cedo na sua escultura subordinado ao tema do guerreiro, logo em 1963, em blocos únicos de cimento fundido ou poliester, e também muito mais tarde em peças de grande porte, construídas por empilhamento e «assemblage» de blocos de pedra. Não são nunca figuras complementares ou simétricas dos corpos femininos, nem são mesmo reconhecíveis como formas orgânicas, que são sempre imediatamente sensuais na sua escultura. Emblemas do poder e da autoridade nas suas poses hieráticas, também nunca são figuras heróicas e talvez se devam entender apenas como fantoches, espantalhos, bonecos articulados mais patéticos que ameaçadores, efígies absurdas de uma ordem absurda do mundo. Na sua configuração mecanizada de «robots», artificializando-se o corpo e a sua energia no invólucro da armadura, esses Guerreiros é de desumanização e violência que falam.
Ao contrário das peças monumentais mostradas no CAM, em 91 («Recordações de Guerra»), e em Cascais, em 94, na «Apresentação da Rainha» (D. Leonor, entre Sentinelas, Cruzados e Guerreiros), a nova série é sempre de um aparente pequeno formato, embora essa ilusória aparência resulte da construção quase filiforme e das pequenas dimensões dos fragmentos associados, uma vez que em diversos casos as esculturas se elevem até perto dos dois metros. São agora guerreiros domésticos, uma infantaria arcaizante e patética de um tempo em que guerras maiores se travam com bombardeamentos aéreos seguidos pela televisão e outros jogos de guerra se consomem como diversão em ecrãs virtuais.
Estas figuras guerreiras parecem saídas de «kits» de montar, com os seus módulos aparentemente idênticos (talvez encontrados, talvez feitos em série), com os parafusos que lhes articulam o tronco e os membros e os adereços bélicos. Os mesmos pequenos cubos de pedra sobrepostos constroem as pernas desmesuradas ou o torso breve, que noutros casos se sustenta em réguas também de pedra ou em tubos de latão. Pequenos blocos perfurados (as cabeças ocas e cegas), discos e volumes cilíndricos, fragmentos irregulares, possíveis desperdícios recortados que terão sobrado de peças ornamentais, articulam-se em formas infinitamente variáveis, num jogo de colagem ou «assemblage» que é aparentemente ocasional mas, de facto, rigorosamente controlado, como se comprovará sujeitando cada peça a uma observação que a circunde e que atente às suas sombras projectadas. Aliás, esse mesmo jogo de sombras, que amplia a escala dos fragmentos, propiciará um diferente olhar sobre as peças articuladas, isolando volumes e destacando neles a sua qualidade formal «abstracta».
Construções lúdicas e experimentais quanto aos processos construtivos, objectos únicos e múltiplos, na aparente variação de um vocabulário predefinido, estes novos Guerreiros são fabricados com uma pedra cinzenta, porosa nas superfícies cortadas ou brilhante e quase negra nas faces polidas, que tem por nome próprio Diorito anfibulógico de Sever do Vouga. Figuras esquemáticas de frágil verticalidade, de virilidade retórica, desumanizados e vulneráveis na sua arrogância patética, eles não são personagens de qualquer guerra de sexos. São vestígios risíveis de uma desordem absurda do mundo e dos homens.
Se destes machos e fêmeas reunidos em Aveiro só as mulheres têm corpo, deve ver-se que têm também rosto, quase sempre, e por vezes nome próprio (Filipa, Isabel), desarmadilhando a vigilância sobre qualquer incorrecta coisificação voyeurista como meros (?) objectos do desejo. Não são corpos abstractos nem idealizados, e multiplicam-se individualizando diferenças, identidades e situações, mesmo quando assumem sentidos alegóricos, como a fonte, ou retomam configurações já experimentadas por Cutileiro, como as figuras bífidas. Sem serem retratos, povoam um mundo humano, inteiramente terreno e próximo, onde a ambição da arte não é a procura das essências ou dos paradigmas.
À homogeneidade dos Guerreiros sucede a diversidade de um vocabulário construtivo que intencionalmente se distancia de uma síntese conclusiva, como que para manter vivo um leque largo de possibilidades ou direcções: meninas e mulheres, figuras articuladas ou esculpidas de um bloco único, deitadas ou erguidas, torsos e, em muitos casos, íntimas situações quotidianas, surpreendidas com a agilidade de desenho. Em vez da procura de uma solução ideal e finalista, eventualmente através da redução de meios ou de formas, ou perseguindo qualquer arquétipo da feminilidade, trata-se sempre de adicionar processos de representação, de multiplicar a criação, e de procurar a frescura de um primeiro achado em cada objecto fabricado, reinventado.
A produção quase serial, retomando modelos já experimentados e introduzindo variações circunstanciais, a dimensão artesanal viabilizada pela adopção de meios tecnológicos avançados e pela invenção de processos construtivos mais rápidos e económicos, assumem no trabalho de Cutileiro uma dimensão maior de resistência à extinção de um campo que, abandonada a vocação comemorativa e consumida a especulação formalista até ao nada, se interroga sobre as suas condições de continuidade.
Mostrada no novo Centro Cultural e de Congressos instalado na antiga fábrica de cerâmica que ainda ostenta o nome de Jeronymo Pereira Campos e Filhos (1896/1916), a exposição foi comissariada por Fernando Pernes e é acompanhada por um álbum (talvez excessivamente luxuoso e, numa primeira tiragem, com deficientes reproduções), que inclui textos de Fernando Pernes, João L. Pinharanda e José-Augusto França.
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