Expresso Cartaz 08-04-2000
A reconstrução do mundo
LOUISE NEVELSON
Museu Arpad Szènes - Vieira da Silva ( Até 25 de Junho)
A UMA mini-retrospectiva de um grande artista pode certamente chamar-se uma grande exposição. É o caso da mostra com que o Museu Arpad e Vieira da Silva apresenta a escultora norte-americana Louise Nevelson (1899-1988), na sequência de outras exposições dedicadas a nomes decisivos da arte do século XX que têm passado pelas suas salas. Bastaria a vasta escultura de 1960, Sky Presence II, que viajou de Buffalo, Nova Iorque até Lisboa, para justificar a importância do acontecimento, mas estão ainda em exposição quatro outras peças negras bem características da sua produção, de entre 1950 a 1985, acompanhadas por alguns exemplos raros dos seus anos de formação, através de desenhos e cerâmicas dos anos 30 e 40.
Esta pequena-grande mostra ocupa o espaço do Museu habitualmente dedicado à obra de Arpad Szènes (agora deslocada para outras salas) e poderá ser completada com a revisão de outra peça marcante da artista que faz parte da Colecção Berardo, exposta no Museu de Sintra. Em Royal Tide - Down, de 1960, a tinta negra que recobre regularmente as caixas de madeira construídas pela escultora dá lugar a um uniforme revestimento dourado, que faz lembrar a talha barroca.
Ao partir da utilização de restos e desperdícios de madeira, o que a associou à «junk culture» da época, Louise Nevelson não tinha por objectivo a imposição do lixo e da banalidade como fins em si mesmo, num processo de redução ou destituição das potencialidades do objecto artístico, que por um breve momento poderia passar por irreverência. O seu trabalho punha em prática uma estratégia de reciclagem dos materiais encontrados, que os regenera e lhes dá a mesma dignidade dos materiais nobres da escultura tradicional, reconfigurando-os sob uma outra existência material e poética, valorizando-lhes as qualidades plásticas através da integração em construções ao mesmo tempo delirantes e enigmáticas que cresciam até à dimensão de «environments» ou ambientes, que incluem, envolvem e absorvem a presença do espectador.
Black Box nº 1, de 1950, exposta no Museu (mas erradamente envolvida por uma moldura larga que a artista usou em peças muito posteriores, de construção mais geometrizada e contornos irregulares), é uma peça pioneira, mesmo se miniatural. Como as invenções têm sempre influências e precedentes, poderia evocar-se a respeito das «assemblages» de pedaços de madeira, que expôs logo em 1944 em Nova Iorque, o exemplo da colagem cubista e cubo-futurista, alguma herança construtivista conhecida através de Torres Garcia, que Louise Nevelson admirava, e, em especial, a estratégia aglutinadora de Schwitters, que ela só viria a conhecer em 1960. Uma outra conjunção significativa, através da importância da caixa como receptáculo e palco em miniatura, pode estabelecer-se com a obra de Josef Cornell, mesmo se as «assemblages» deste traduzem mais directamente uma herança surrealista e integram as imagens e objectos sem lhes dissolverem o carácter referencial.
No caso da escultora, as suas construções distinguem-se da lógica do «ready-made» porque o material encontrado, embora usado quase sempre sem alterações, é totalmente reassimilado e reintegrado numa composição global em que se funde por inteiro, e a pintura que o recobre prolonga e acaba essa unificação dos fragmentos, escolhidos e reunidos em função de princípios ordenadores que têm a ver com a tensão e o ritmo estabelecidos pelas formas entre si («a ordem na sua significação visual», segundo Louise Nevelson).
Mesmo quando é possível identificar a procedência de alguns materiais, como pedaços de móveis, pernas de cadeiras, peças torneadas de balaustradas, cavilhas, tampos de retretes ou coronhas de pistolas, essa referência não se impõe à sua presença formal abstracta e é idêntica ao carácter vivido e usado de um qualquer fragmento anónimo.
Sky Presence II é uma grande parede envolvente na qual se acumulam, com um sentido ascensional que integra sugestões totémicas e cósmicas, sucessivas caixas de diferentes dimensões, por sua vez preenchidas pela acumulação de fragmentos muito diversos, e onde a junção aparentemente ocasional dos elementos se traduz numa ordenação estranhamente rigorosa e exacta, que não é um puro jogo de composição de formas. O carácter plano e pictural dessa construção-muro, tal como o grande formato ambiental que se impõe como paisagem e arquitectura, aproximam-no da ambição ou do sentido do melhor expressionismo abstracto da Escola de Nova Iorque, de que também foram contemporâneos os escultores David Smith e Louise Bourgeois.
Louise Nevelson nasceu em Kiev, na Ucrânia, e emigrou com seis anos para os Estados Unidos. Da sua extensa biografia fez parte uma estadia na Europa nos anos 30-31, onde estudou com Hans Hoffman, que volta a encontrar quando este passou a ensinar em Nova Iorque. Também nessa década trabalhou como assistente de Diego Rivera e beneficiou por vários anos dos programas de apoio aos artistas da administração Roosevelt. A consagração tardia das suas construções ocorre quando em «Sixteen Americans» já se afirmam, com uma geração muito mais nova, os estilos não-gestuais e «neo-dadaistas», de Ellsworth Kelly e Frank Stella, de Jasper Johns e Rauschenberg, e um outro importante «junk-assemblage sculptor», Stankiewicks. Em direcções aproximáveis à de Nevelson, trabalhavam então John Chamberlain, que se associa por vezes à Pop pelas suas compressões de chapas pintadas de automóveis, e Mark di Suvero, com as suas monumentais construções de materiais recuperados.
Duas outras peças tardias expostas no Museu, Sem Título, de 1976-78, e Música de Ouro, de 85, prolongam de modos diversos, em peças de parede, o programa «assemblagista», com associações entre a música e o ritmo formal que a escultora persegue. As três colunas de 1973 fazem a passagem da construção plana à monumentalidade volumétrica de algumas obras públicas da escultora, que nos últimos anos tomaram grande importância na sua carreira, como pode ver-se num filme de 30 minutos, Louise Nevelson in Process, de 1977, que é diariamente exibido (às 13, 15, 17 e 19h; ao domingo às 11, 13, 15 e 17h).
Entretanto, logo nos anos 60, a sua obra conhecera diferenciações e metamorfoses que testemunhavam uma inquietação criativa de rara intensidade. A irregularidade gestual e por vezes barroca dos elementos amalgamados nas esculturas parietais dá lugar à montagem de caixas mais geometrizadas, ocupadas por peças de volumes idênticos e repetitivos, onde predomina o jogo rítmico entre espaços vazios e cheios, entre formas quadrangulares e esféricas, em composições mais construtivas e «abstractas». O trabalho com as sombras toma nessas obras tanta importância como a composição volumétrica dos fragmentos; logo depois a escultora ensaia a utilização do plexiglas, dando transparência às suas construções, então ainda mais geométricas e maquínicas. A constante experimentação de diferentes materiais leva-a a usar também o alumínio, e emprega o aço corten nas suas grandes esculturas para espaços públicos. Uma praça de Nova York, perto de Wall Street, tem o seu nome e sete esculturas em metal, Shadow e Flags.
Louise Nevelson foi também uma militante feminista e teve uma actividade intensa em movimentos associativos de representação dos artistas plásticos - eleita presidente do National Artist's Equity em 1961. Foi ainda uma activista destacada nas intervenções dos artistas contra a guerra do Vietname, em 66-67, quando a decadência chic da Factory de Andy Warhol, e da era Eisenhower, se substituía por por uma nova consciência interveniente (Mark di Suvero, o outro grande escultor-«assemblagista», iniciaria pouco depois um longo exílio europeu).
Vê-la no filme, insolitamente vestida, com as suas longas pestanas postiças e os lenços coloridos, trabalhando com os seus assistentes com uma energia surpreendente para os seus quase 80 anos, é também uma aproximação sugestiva à figura e à obra de uma grande artista. A exposição inclui-se no programa dedicado aos amigos de Vieira da Silva e Arpad Szènes - em 1978 a pintora participou numa exposição da Galeria Jeanne Bucher com Louise Nevelson e com outra grande escultora de origem polaca, Magdalena Abakanowicz.
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