Novas pinturas. A mesma coisa e outra também, num itinerário singular (único e em grande medida insólito), continuado ou persistente, subtilmente diverso, discreto mas reconhecido. Agora maiores formatos, agora acrílico, e não óleo, agora "descolagens" ou transferências com passagem por velhas paredes de azulejos, às vezes com grafitis. Por caminhos seguros, entre o rigor de uma disciplina construída e a abertura à imprevisibilidade dos acidentes e à diversidade dos resultados.
As camadas sucessivas de tinta acrílica, de diferentes cores, aplicadas sobre velhas paredes de azulejos de uma antiga fábrica, são arrancadas e transferidas para a tela - ou pela tela que é encostada/pressionada sobre essa mesma parede. Esse transporte das películas da cor que é inicialmente aplicada pela artista sobre a parede é em grande medida aleatório, sujeito aos acidentes da superfície vidrada e à irregularidade da resistência das camadas de cor ao respectivo arrancamento. Em alguns casos, com o adextramento desta prática, são também absorvidos, transferidos ou apropriados anteriores grafitis.
e outra fotografia documenta o processo de execução:
Com o grafiti introduz-se agora o gesto da mão (alheia, aqui) que está sempre ausente desta pintura (enquanto traço, desenho, marca). E se a metodologia parece sempre intencionalmente restritiva e reducionista (como que cumprindo interditos processuais "pós-tardo-modernistas") a variabilidade dos resultados, a materialidade dos elementos - a cor-matéria, a película de cor -, e a irregularidade acidentada das superfícies, asseguram sempre uma grande "riqueza" do resultado final. Uma grande diversidade também, nascida de um processo que se repete mas que é sempre parcialmente aleatório.
Com lugar na tradição do monócromo, na tradição de uma não-figuração materialista, esta "abstracção" que se impede de dizer, contar ou sugerir, que parece muda mas que afinal fala de si própria, do seu fazer, não é nunca um maneirismo. Mostrando o seu modo de fazer-se (e as qualidades matéricas e cromáticas de que se faz), esta pintura "abstracta" nunca é árida, e nunca é convencional (uma convenção artística, um discurso para o interior do campo da arte). Essa presença material do seu fazer (que não é um mero processo), não é apenas um lugar de chegada numa tradição reducionista da pintura, não é um limiar terminal da arte, mas um recomeço.
#
Algumas antigas notas: 95, 97, 99
MARTA SOARES, Boqueirão da Praia da Galé22-04-95
Na sua segunda aparição, depois de ter mostrado um livro carregado de pintura, diário e caderno de exercícios onde as matérias da pintura se substituiam às palavras ou às imagens, M.S. expõe — apenas à luz diurna, das 14 às 17h — uma longa superfície de papel onde se inscrevem dois rectâgulos, um totalmente negro e outro (o primeiro, da esquerda para a direita) só irregularmente manchado, sem que nele se sublinhe o valor do gesto ou da mancha, apenas como um lugar de passagem, de desiqulíbrio e imperfeição. O título, Lisboa, Inverno de 1953 — Encontro com Ad Reinhardt, não traduz nem propõe facilidades ilustrativas e metafóricas; o que importa será a repetição de uma situação sempre potencialmente nova, da autora e nossa, experiência sensível e intelectual (e já com a sua história conhecida) perante os valores do negro, como matéria, espaço e luz, como tempo, como campo aberto, talvez começo ou fim. A confrontar com outros espaços negros expostos em Lisboa.
MARTA SOARES, Módulo
14-06 /12-07-1997
A primeira individual de galeria sucede a duas notadas apresentações no espaço experimental da Monumental II/Boqueirão da Praia da Galé, em 1993 e 95, na passagem do Atelier Livre de Pedro Morais (Escola António Arroio) para a Faculdade de Belas Artes de Lisboa. E se a memória desses primeiros encontros não é indispensável para entender a individualidade destas novas pinturas, alguma solidez de percurso assim se reconhecerá. Primeiro, «116 páginas para Jean Fautrier», um livro (de razão) onde a pintura a óleo se folheava como páginas de diário, entre acumulações de matéria e transferências de pastas, cores amalgamadas, possíveis «Otages»; depois, um «encontro com Ad Reinhardt», no depósito de uma enorme superfície negra, fotográfica e informe. Agora, a pintura ganha a autonomia do objecto-quadro, que já não é apenas procura e pesquisa (intenção, projecto...); multiplica-se como série, em grandes e menores formatos, sobre tela ou papel; desdobra-se em possibilidades de construção plástica, realizadas e ao mesmo tempo mantidas num estado de aparente infinitude formal. A branco e preto, cada quadro é a inscrição de um fazer calculado e certamente aleatório, por aplicação e sobreposição de pastas, cuja configuração final parece variar por efeito de posteriores prensagens e descolagens parciais. Estruturado em segmentos quadrangulares ou em faixas, ou mantido como uma superfície única, inteira mas instável, o quadro é uma parede (janela e muro) em que se inscreve um fazer ignorado, o vestígio de uma acção, a sedimentação de materiais e tempos, que sendo destituída de qualquer registo anedótico mais sustenta a vertigem e o prazer do estímulo óptico.
Marta Soares, Módulo Porto
6/30-11-1999
Novos trabalhos apresentam no Porto e exibem a continuidade do trabalho desta jovem artista de Lisboa, cuja pintura explora um processo próprio de composição residual e de construção grandemente aleatória, em consequência da «descolagem» parcial a que são sujeitos os materiais aplicados sobre o suporte (tela ou papel). Várias direcções são enunciadas, de aparência mais ou menos informal, de maior ou menor economia cromática e com diferentes efeitos texturais, incluindo uma outra experiência onde a mancha «abstracta» dá lugar à marca impressa da mão, e com destaque para novos trabalhos sobre papel, de grande formato, um ocupado por um magma informe com particular intensidade matérica e outro em que a descolagem foi praticada sobre um suporte onde se insinua um fundo de formas vegetais.
Comments
You can follow this conversation by subscribing to the comment feed for this post.