ARQUIVO EXPRESSO 11-03-2000
"MEIO SÉCULO ALEMÃO"
ARTE ALEMÃ DO PÓS-GUERRA - A Colecção do Kunstmuseum de Bona
Centro Cultural de Belém (Até 16 Abril)
É UMA importante exposição que o CCB apresenta, graças à circulação internacional da colecção do Kunstmuseum (Museu de Arte) de Bona. Um panorama extenso e diverso, que, apesar dos 42 nomes presentes, não pretende ser exaustivo, optando antes pela forte representação que é quase sempre atribuída a cada artista. Não é esse, no entanto, o caso de dois dos artistas mais originais no panorama do pós-guerra alemão e internacional, e que apenas surgem brevemente sinalizados por uma obra isolada, decerto por limitações da própria colecção: Hans Hartung, que já era antes de 1945 um dos nomes alemães com impacto seminal sobre a abstracção gestual, e Konrad Klapheck, um pintor «clássico» que desde meados da década de 50 se interessou pela representação minuciosa e subtilmente crítica de objectos e máquinas de uso quotidiano, cuja obra isolada já era conhecida dos artistas neo-figurativos ou Pop de princípios dos anos 60.
Também é indispensável apontar a ausência de dois outros nomes incontornáveis em qualquer panorama alemão (ou geral) deste período e que poderiam dar uma configuração menos árida e datada às primeiras galerias: Wols (1913-1951), outro pioneiro da arte informal com carreira parisiense, e Jules Bissier (1893-1965), artista de primeiro plano e quase sempre de carreira solitária, cujas formas-signos miniaturais e concisos, desenhados sobre papel, só foram conhecidos depois de 1945 e então contribuíram para o interesse pela arte e a filosofia oriental.
Estas referências não retiram mérito ao acervo em trânsito, mas servem para relativizar a abrangência da mostra e para sublinhar que o subtítulo «A Colecção do Kunstmuseum de Bona» é tão decisivo como o título. Qualquer panorama alemão tem sempre uma forte marca regional(ista), dada a tradição cultural e política própria do país, e se, neste caso, a colecção é particularmente atenta às movimentações baseadas na Renânia-Westfália, tendo Düsseldorf como centro principal, acontece que o Museu de Bona é um museu entre os vários outros da região, cada um deles com os seus acervos distintos.
A montagem das duas primeiras galerias, que não representam apenas os artistas surgidos após o conflito mundial - Willi Baumeister e Ernst Wilhelm May tinham-se afirmado muito antes da catástrofe nazi -, opta por caracterizar largamente uma espécie de momento zero que sucede à Guerra, após a devastação total de um contexto artístico que fora dos mais fortes do início do século. É um panorama interior que se expõe, um contexto dramático que, depois das perseguições antimodernistas do nazismo e perante o dogmático realismo socialista imposto a leste, corta todas as amarras com as suas tradições realistas. Que, com o peso esmagador dos seus traumas recentes, se refugia até aos anos 60 no silêncio das aventuras da expressão íntima e nas especulações formais de uma linguagem abstracta internacionalmente codificada. A presença de Carl Hofer (1878-1955) e Bruno Goller (mestre de Klapheck), dois figurativos, permitiria diversificar essa imagem uniforme.
Este primeiro ciclo que caracteriza a década abstracta de 50 é mostrado, nas suas presenças e ausências, como um tempo de reabertura ao exterior, mas também de estrita dependência face ao que era ainda a Escola - internacional - de Paris, pelos caminhos da abstracção lírica (Fritz Winter) e do informalismo gestual (Karl Otto Götz, o primeiro Peter Brüning) ou matérico (Emil Schumacher). Mas no final de década já tem lugar a emergência de um primeiro movimento colectivo alemão com repercussão internacional, o Grupo Zero, fundado em 1957 por Otto Piene e Heinz Mack em Düsseldorf (a que se junta Günther Uecker), com extensões de Pino Pascali e Manzoni em Milão e Yves Klein em Paris. A intenção expressiva e os dramas privados dão aí lugar a uma busca da pureza e da espiritualidade através do trabalho sobre a cor imaterial e a luz
Nos princípios de 60, porém, renovadas formas de objectividade afirmam-se na pintura alemã, estabelecendo uma situação autónoma, embora com afinidades com a nova figuração inglesa e a Pop americana, graças ao referido Klapheck, a Wolf Vostell (outro ausente), Gerhard Richter, Sigmar Polke e outros. Wostell, que tinha conhecido os happenings de Alan Kaprow, dinamiza o movimento internacional Fluxus, no âmbito do qual Joseph Beuys começa a construir a sua notoriedade das décadas seguintes (os vestígios objectuais da sua automitificação resistem mal ao museu e são os desenhos que melhor caracterizam uma procura regressiva de práticas e culturas arcaicas). Richter e Polke apresentam em 1963 o «realismo capitalista», referindo-se criticamente à Pop em alternativa ao realismo socialista, enquanto, em Berlim, Baselitz e Eugen Schönebeck definem o programa de um «realismo patético». Com outros artistas, como Horst Antes, este com trânsito parisiense, Penk, Hödicke e Markus Lüpertz, os artistas figurativos alemães reeencontram pontos de ancoragem no expressionismo histórico e enfrentam pela primeira vez depois da Guerra, tendo como tema central a representação da figura humana, a complexidade trágica do passado e do destino alemães. O isolamento da Alemanha e o predomínio então atribuído às práticas ditas experimentais fariam com que só muito mais tarde se assegurasse visibilidade internacional a essa dinâmica, já então amalgamando-lhe novas gerações de neo-expressionistas e dissolvendo-a no contexto vago da «transvanguarda».
Na exposição são particularmente poderosas as representações de Baselitz e Penk, de Lüpertz e Immendorff , de Anselm Kiefer, através de uma sequenciação de salas que depende mais das respectivas capacidades espaciais do que da seriação cronológica das intervenções. Por circunstancialismos da colecção é aos três últimos que cabe aqui o desafio mais extremo de interrogar pela imagem e com a veemência dos meios picturais a densidade problemática do presente e da memória da Alemanha, em obras apostadas em retomar, actualizando-a, a plenitude das condições e das ambições da pintura.
Entretanto, as também extensas presenças de Richter e Polke mostram dois artistas habitualmente muito valorizados, em grande medida, certamente, porque nas suas obras se estabelece um diálogo directo com a Pop e porque as questões mais especificamente formais e estéticas têm neles um maior peso do que o enfrentamento com o imaginário e a realidade alemães, podendo sempre interpretar-se como exercício de cepticismo sobre a continuidade e renovação da pintura, ou críptica ironia sobre a banalização de todas imagens.
Polke trabalha com imagens e fragmentos extraídos dos meios de comunicação de massas, com o emprego ampliado das tramas tipográficas, sugerindo uma reflexão sobre o conteúdo representativo que, por fim, é apenas um exercício de denegação e auto-ironia. Richter está presente com uma série de obras particularmente coerente, onde parte da apropriação da fotografia e da referência à banalidade das suas imagens, moldando depois o simulacro da paisagem e o «trompe l'oeil» pictural num processo em que os exercícios de estilo podem sempre ser referidos como «interrogações» sobre a insignificância e inutilidade da pintura.
Uma outra direcção contemporânea daquela exploração dos recursos significantes da figuração manifesta-se pela via da recuperação elegante da tradição construtivista, explorada como exercício já apenas formal por Palermo e Knoebel, enquanto Ulrich Rückriem leva o trabalho minimalista sobre o material e a forma a resultados de grande sensualidade. Franz Erhard Walther e Hanne Darboven exemplificam comportamentos e programas artísticos auto-referenciais.
Não são particularmente relevantes os artistas mostrados na ponta final da exposição e, se Rosemarie Trockel tem larga circulação, a sua referência insistente à identidade feminina e ao trabalho quotidiano, mediante a utilização do tricot, parece ter o destino da gratuitidade.
Saltando sobre a importância da obra e do ensino fotográficos dos Becher, e também sobre o casal Blume, a exposição encerra-se com uma significativa aproximação entre obras de uma quase primária ingenuidade de dois artistas mais jovens, Katharina Grosse e Boris Becker (nascidos em 1961). A pintura da primeira executa justaposições e sobreposições de camadas de cor, uniformes e de pincelada visível, enquanto o segundo fotografa pedaços de paisagem numa exploração pictural da cor, das texturas e marcas gráficas. Realidade material da pintura e realidade mimeticamente referencial esvaziada de sentido, num outro grau zero da criação que certamente ficará aberto a futuros recomeços. Ou se extingue.
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