Não percebi porque se associam no programa de Serralves as exposições de Lourdes Castro (com Manuel Zimbro) e da norte-americana Dara Birnbaum (Nova Iorque, 1946). Talvez a ideia seja estimular a curiosidade do visitante colocando-o perante o desafio de perceber por que se associaram na programação de Serralves as exposições de Lourdes Castro e de Dara Birnbaum. Julgo que o visitante não descobrirá essa eventual razão, o que o levará a interrogar a lógica geral da programação de Serralves. Talvez isso o ajude a ser mais um visitante questionador do que um mero consumidor de arte contemporânea - é a minha perspectiva amigável ou optimista. Ou, pelo contrário, face à impossibilidade de perceber a associação de duas exposições tão adversas ou conflituantes, talvez perceba que estas coisas da arte contemporânea não são para perceber, mas só para consumir, passando-se pelo centro cultural com a mesma displicência indiferente com que se passeia nos restantes fins de semana pelos centros comerciais (e aliás, o tio Belmiro, o BPI, etc, estão de ambos os lados).
Lençóis bordados, "Sombras sobre lençol" ou "Sombras deitadas", c. 1968-72 ("Faço-os eu própria porque realmente tenho prazer em bordá-los; é muito socegado e tranquilizante; uma espécie de concentração e meditação. Às vezes ouço música, e muitas vezes não penso em nada." L.C. Paris 1969)
De um lado, um silêncio desenhado por sussurros e intimidades: as caixas feitas de acumulações de objectos carregados de vidas - usados, recolhidos e reciclados, propostos a uma nova existência, que é lúdica e pode ser poética, se lida como tal. Os retratos dos amigos, apenas recortados como sombras, como se a sua presença efémera pudesse permanecer depois da sua passagem, dando identidade artística aos jogos de sombras projectadas com que todos convivemos sem dar por isso. Os lençóis bordados, retratos discretíssimos, e a recuperação de antigos lavores femininos, marcas deixadas por visitantes a não esquecer, talvez histórias. As flores fixadas na sua aparência menos gritante, despojadas das suas cores para serem só contornos, fantasmas que parecem mais pertencerem a um diário de memórias pessoais do que a um catálogo ou inventário botânico - afectos para além da ciência.
Do outro lado, a invadir espaços comuns e proximidades, a gritaria estridente de sonoridades televisivas. A mistura é imprópria, indecente, como se o importante fosse chamar a clientela com estridências de feira para as várias barracas de atracções.
De um lado, o silêncio, deixando ao visitante a necessidade de descobrir o sentido dos objectos, ou a sua serena ausência de sentido, existência apenas. Do outro, o ruído e uma dupla e simultânea agressão - o barulho "mediático" e a imposição de um sentido explicativo que qualifica os objectos como importantes a partir de uma mensagem política que se fornece com a autoridade do museu: aquilo não são estridências de feira televisiva mas - segundo se explica - a desconstrução das estridências de feira.
Logo na primeira tabela, o título completa-se com o que o espectador deverá perceber (à força) no que ouve e vê: "Tecnologia/Transformação, uma incendiária desconstrução da ideologia entranhada no formato televisivo e na iconografia cultural popular (...)". Incendiária, porque se vêm explosões e chamas, intervalando uma imagens de vulgares ou (rascas) programas televisivos. Incendiária, porque é com o mito das revoluções políticas que se acena ao passeante incauto e indiferente.
Poderíamos esperar que a instituição museu descontruísse o discurso dito desconstrutivo, dissecando a sua ineficácia, ou melhor, a sua contribuição para que se instalasse o grande divórcio entre a ambição artística tida por erudita e pretendidamente crítica e, em oposição, o gosto cultural das chamadas massas - gosto acéfalo de massas ignaras que consomem os produtos de Hollywood e quejandos, uma velha conversa... Mas não, não é isso que faz o museu, onde o discurso ideológico contra a "ideologia entranhada" volta a ser fornecido acriticamente, mas agora recontextualizado como arte a que o Museu considera oportuno ceder o seu espaço. Poderia antes dizer-se na tabela de Serralves que aquilo que num determinado momento, circa ou após 68, se introduziu no campo da arte como combate ideológico tem hoje de ser desconstruído como objecto datado e inócuo, integrado num determinado contexto de contestações sociais e culturais mas depois recuperado pelas instituições culturais do presente como mercadoria artística, ao serviço das indústrias do entretenimento cultural e do mercado museológico. O formato televisivo, passível de reedição e redifusão, facilita em muito esse papel de mercadoria museológica. Mas o que era errado política e esteticamente é hoje uma mistificação oportunista.
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Sombra projectada dum guarda-roupa (1966?)
Falta à exp. de Lourdes Castro a presença explicitada de uma vertente do seu trabalho que tem a ver com a produção de múltiplos, como uma prática de extensão do acesso aos objectos artísticos muito generalizada nos anos 60, num tempo de gostos e consumos Pop. Os múltiplos (serigrafias e outras edições) exploravam novas potencialidades técnicas de reprodução e multiplicação, visando um consumo artístico não dependente do fetichismo da peça única. Em grande medida, a lógica da produção de múltiplos é paralela à da produção de objectos ou instalações efémeras. O Museu, hoje, retoma aquela fetichização do único.
Outro desvio ou outra ocultação do sentido da obra/carreira de Lourdes de Castro (considerando que as condições e modalidades da produção não são alheias à realidade material das suas obras/peças) diz respeito à vocação decorativa de grande parte do seu trabalho, bem presente em muitos dos objectos (únicos ou não) e explicitamente afirmada nas sua obras em azulejo e em tapeçaria. As potencialidades decorativas são qualidades (e não defeitos ou limitações) do seu trabalho.
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