O Museu reapresenta a sua colecção. Numa montagem eficaz e de grande subtileza (não foi na primeira visita que entendi as suas qualidades)
Adão e Eva de Canto da Maya, em primeiro plano (Fotos *L)
A primeira ideia com que fiquei da montagem da colecção do Museu do Chiado foi negativa. Talvez porque esperava que a inauguração pudesse ser menos discreta, compensando com as presenças políticas apropriadas à situação alguma reserva ou hostilidade do meio. Talvez porque o início contemporâneo da mostra me pareceu e parece ainda demasiado complacente com anteriores gostos pessoais do director substituído (ou preso às carências do acervo). Talvez porque tivesse dado mais atenção às circunstâncias sociais do que à disposição das obras. Foi melhor assim. À segunda visita, pude mudar de opinião, desprevenidamente, e fazer do itinerário de ida e volta pelo museu, na ordem cronológica contrária à da história, de acordo com a aposta feita pela sua directora, Helena Barranha, a oportunidade de uma descoberta surpreendida das razões, acertos e achados dessa mesma montagem.
As obras não se tornaram à segunda visita mais "primas" ou excelentes - e há que situar a generalidade do património coleccionado na sua inevitável mediania nacional: a história do século XX, com os seus antecedentes e prolongamentos, não é famosa, ou dotada de forte originalidade. O que aconteceu, contra a primeira impressão, foi que o seu alinhamento foi fazendo cada vez mais sentido, trocando-se o que poderia ser uma mera disposição sequencialmente escolar por um desafio constante à atenção e à perspicácia do visitante.
Foi já na grande galeria onde deve começar a colecção permanente, passada a sala dos fornos, que começou a fazer-se luz, ao inverter os passos desde o passado mais recuado para o mais recente, entendendo as razões daquelas escolhas precisas que vão passando da paisagem à não-figuração, na parede direita. Optou-se e bem por instalar as pinturas com pequenos espaços entre elas, numa acumulação que irrita quem tem preguiça de ver, e tomaram-se liberdades com a sequência, que é mais cronológica e ao mesmo tempo temática e mais formalmente coerente do que guiada por académicas classificações por escolas ou estilos. Fiquei a pensar que a montagem feita por Heimo Zobernig da colecção do CAM, há poucos meses, teve aqui uma salutar influência (embora sem se copiarem, naturalmente, as suas opções mais extremas).
As pinturas de Dordio Gomes, Lanhas, Vieira da Silva, Rodrigo e Teresa Arriaga (parte)
À direita, e do fundo da sala para o início, encontra-se uma sequência de vistas de rios, que naturalmente não são acidentais e foram escolhidas com gosto e inteligência: O Bairro de Pescadores de Alvarez (1929), áspera e triste beira rio não identificada; depois Paris e o Sena (Quai Voltaire) de Milly Possoz (não datado, c. 1930/37), trocando os barcos em primeiro plano por emblemas da modernidade urbana e cosmopolita; Carlos Botelho, Lisboa e o Tejo (1935) e logo o Rio Douro de Dórdio Gomes (mesma data), numa vista geral de grande profundidade de campo e imprecisa descrição, que dá certíssima passagem ao Cais de Fernando Lanhas (43-44), com uma idêntica mancha azul da água interrompida pela geometria metafísica do paredão construído ao centro, também em profundidade espacial.
Fernando Lanhas (1923), Cais 44 (1943/44), óleo sobre papel (Depositado por Fernando Guedes)
O trânsito abstraccionista continua com a pequena obra de Vieira (Casas, 57), em idênticos azúis, mas de vaga sugestão citadina, tal como a construção não figurativa de Joaquim Rodrigo (S.t., 1958) que se pode ler como traçado topográfico. E é a cidade geometrizada que Teresa Arriaga representa descritivamente (Movimento I, 1951, numa obra exposta pela primeira vez no Museu), tal como Nadir Afonso, no "Espacilimité" (1957) - e é bem visível o acerto do entorse à cronologia feito com as pinturas de Vieira e Rodrigo, ao mesmo tempo cromático e formal).
Na sequência final (que é o início da sala) estão obras de Jorge Pinheiro (69), Jorge Vieira (69-2000) e Ângelo de Sousa (72) que decorrem de outra lógica formalista, de uma referencialidade que já não remete para qualquer exterior, mas apenas para os meios da pintura, em superfícies lisas de cor uniforme, até ao preto e branco terminal - aliás, a forma "pura" de J. Pinheiro é também referida a um espaço urbano graças ao título Homenagem a Amsterdão, o que vem intensificar ainda mais o jogo relacional com e entre as peças expostas. O panorama total, de Alvarez a Ângelo, faz-se de acertos entre obras e desafios de leituras, ao mesmo tempo que pode ser didacticamente justificado como exemplar do itinerário evolucionista caro aos academismos modernos, da figuração à abstracção. A questão fica em aberto quanto a tratar-se de uma perda de recursos e potencialidades (a caminho do silêncio, ou da morte da arte), ou de um "progresso".
Na parede oposta o percurso faz-se com a presença da figura humana, do retrato e da aparição de personagens ficcionais ou oníricos, reais ou imaginários, com um idêntico cuidado de construir uma rede de estímulos visuais e desafios interpretativos que são sempre o abrir de possibilidades de sentido antes de serem classificações de escola. Raramente uma montagem expositiva se faz com uma tal sensibilidade objectual e riqueza de pormenores (e são as exposições de Jorge Calado que vêm à ideia). Tratando-se de uma primeira exposição de uma directora que tem formação em arquitectura (e é para mim uma desconhecida), a surpresa é maior. Não se trata só de uma substituição de directores, mas já da afirmação de uma capacidade surpreendente de relação com as obras do Museu.
Começa-se então com Helena Almeida (Desenho Habitado, 1975), que é e não é um auto-retrato, com que se faz uma ponte perfeita (para lá do agrado ou não das obras) com idênticas auto-figurações de Júlia Ventura e de Jorge Molder, na Sala dos Fornos - é curioso ver que em todos estes três "casos" se expõem duas obras (porque há uma falta de identidade ou de consistência na presença de uma obra única?). Segue-se Noronha da Costa (c.71-75) com uma imagem fantasmática, e logo outra aparência representada na silhueta ou sombra recortada de Lourdes Castro (64), enquanto o auto-retrato de Paula Rego (62) tem outra raiz imaginativa. Um pequeno interior de Almada (48) é um intervalo de estilização geometrizada da figura, mas surge logo, também em formatos reduzidos, o agrupamento dos imaginários surrealistas, com Fernando Azevedo (50-51, Personagens Preciosas), Cesariny (c. 47, Soprofigura) e Vaspeira (51, Noctívolo). Com um acerto cronológico que marca bem a simultaneidade das "correntes" e o duplo ritmo surrealista, aparecem em seguida Júlio Pomar (Gadanheiro, 45 - num diálogo marcante com a figuração de Paula Rego) e logo Cândido Costa Pinto (42) e Dacosta (41), para terminar com a força poética do Mário Eloy escolhido (O Poeta e o Anjo, c. 38) - em frente, o quadro de Alvarez sugere um idêntico ingenuismo (um certo gosto ou referência popular), característico de muito modernismo dops anos 20/30. E é com Eloy que se passa à pequena sala seguinte, breve memória da vanguardas e de outras modernidades que não se quiseram de ruptura.
Menino e Varina de Eloy (28) faz a necessária ponte expressionista, Almada estiliza um desenho de Arlequim (29) cujo fato de xadrez rima muito discretamente (a grelha abstraccionista) com o tabuleiro do Jogo de Damas de Abel Manta (27), obra maior do estudo de Cézanne, antes de Eduardo Viana dominar a pequena galeria com o seu nu de 1925 e a experimentação da Revolta das Bonecas (16), ao lado das pequenas cabeças de Amadeo (13-15). Na parede oposta um outro diálogo paradigmático junta muito bem o retrato de Sousa Lopes (A Blusa Azul, c. 1920) e a Cabeça de Santa Rita (1910) - e é aquele que "ganha" o desafiador confronto que aqui se faz - numa aproximação iconoclasta e para escândalo de Y, para quem "a vanguarda" parece dever ser agora objecto de sacaralização reverente. Ao lado a referência conveniente a Cristiano Cruz (c. 16). E a exposição entra noutra sala e noutro tempo mais recuados.
Em vez de seguir o itinerário, será de retomar o sentido inverso para ver alguns textos de parede que marcam as etapas percorridas. Ficam para depois. E não se falou da escultura:
a escultura está presente com apenas três obras, desde o Bateau Fixe de René Bertholo (66), que não é escultura mas objecto, imagem recortada e animada, até ao Munumento ao Prisioneiro Político de Jorge Vieira (53) e ao Adão e Eva de 1929-39, que ao fundo se entrevê em relação já com o nu de Eduardo Viana.
(As fotos são emprestadas)
e fico com vontade de ver
Posted by: Luísa | 04/08/2010 at 17:38
Domingo de manhã estou lá caído!
Posted by: AB | 04/09/2010 at 17:38
Tem graça, na minha última visita ao Museu do Chiado o "Adão e Eva" de Canto da Maya estava numa sala quadrada e mais ampla do que a que observo na foto. Gostei mais de ver a peça no outro espaço.
Ao ler a sua visita pelo Museu do Chiado e com as pinturas que realçou tenho vontade de voltar!
Posted by: Ana | 04/13/2010 at 13:02