O "Público" fez hoje concentrar as atenções que acompanham o Dia Internacional dos Museus (este ano muito discretamente assinalado) sobre o Museu de Arte Popular e a sua fugaz reabertura. É também o MAP que irá visitar a ministra da Cultura, para além de outros previstos acontecimentos oficiais. Em "O regresso do museu que se recusou a morrer" (anunciado na capa do caderno como "O Museu de Arte Popular vai ter uma nova vida"), Alexandra Prado Coelho (com as fotografias de Daniel Rocha) revê bem o passado recente e as suas razões, e ouve as intenções da directora Andreia Galvão - arquitecta e autora de uma tese sobre o arquitecto Jorge Segurado (o responsável pelos projectos de interiores, acabamentos e mobiliários adoptados pelo MAP a partir de 1944 e até à inauguração em 1948).
"Como é que passou pela cabeça de alguém que era possível ocultar estas pinturas?", perguntei eu, lembrando aliás que a ocultação e a consequente destruição a breve prazo tinham alguma correspondência com o que o chamado regime anterior tinha feito com outras pinturas murais (frescos no caso) de muito próxima data. Referia-me aos painéis do cinema Batalha, no Porto, executados em 1946-7 e destruídos em 1948 por ordem do "Governo Civil", sendo estes de Lisboa de 1947-48, ao que se julga, e constituindo o mais representativo conjunto de pinturas murais da autoria dos pintores-decoradores que trabalhavam para o SPN e o SNI nas suas diversas frentes, das exposições universais (Paris 1937, Nova Iorque 39) ao Verde Gaio, da premiação de Monsanto aos interiores das pousadas, dos salões do Palácio Foz às exposições de propaganda. Crime por crime, e ambos com (des)razão política. Agora a coberto de uma história da arte que primeiro foi militante anti-fascista e depois preguiçosa e cobarde.
Também recordei que o mesmo Estado que exige dos privados a conservação de decorações murais se permite destruir o que julga que é seu. E pode citar-se outro caso que envolveu Estrela Faria (uma das anunciadas vítimas em Belém; por extenso: Estrela da Liberdade Alves Faria, 1910 - 1976) que teve um grande painel no cinema Alvalade, de 1953, hoje conservado no mesmo edifício reconstruído (com restauro da K4). Aliás, no caso do MAP, tinha-se chegado a fazer contas aos custos da transferência das pinturas para outro local, hipótese duplamente irrealista.
Os painéis do MAP não são obras-primas e não podem ser sobrevalorizados, mas são uma componente essencial de um museu que foi concebido como um museu-espectáculo (como são os museus que se seguiram em Paris à Exposição de 1937 e voltou a ser há pouco o Quai Branly) e como uma expressão da etnologia folclorizante que era a ciência do seu tempo (algo retardado pelas carências da 2ª Guerra e as contradições internas ao regime). São também uma muito particular exemplificação do convergência ou compromisso entre modernismo e inspiração popular, que tem uma longa e complexa história com sucessivos episódios vanguardistas. Sem se poder dizer, neste caso, que elas representam esteticamente o regime de Salazar, já que essa representação é objecto de virulentas tensões opostas.
É muito citada a crítica prévia do coronel Ressano Garcia contra os modernistas de 1940, mas ignora-se em geral que António Ferro e as opções estéticas da própria Exposição do Mundo Português (de que decorre o edifício e a equipa do MAP) eram alvo de um mais directo ataque da parte de Henrique Galvão, num confronto territorial aceso entre o Centro Regional e a Secção Colonial, a curta distância, e entre o director da Emissora Nacional e o Secretário da Propaganda Nacional:
"Escreve-se à francesa, pinta-se à espanhola, constrói-se à americana - mas nem na forma nem nos motivos, isto é: nem na técnica nem na inspiração, os artistas são portugueses. A própria Arte Popular está sendo explorada - é o termo - de forma tão atrabiliária, através das chamadas estilizações, que o povo deixará de ser o seu cultor e aos artistas acabará por perguntar-se se terá valido realmente a pena estarem no alto de vinte séculos de civilização para serem pouco mais do que primários. (...)não vemos nem compreendemos uma arte portuguesa sem inspiração ultramarina, sem a intervenção das colónias. É Além-Mar que os nossos artistas hão-de encontrar os traços nacionalistas da sua arte e o cunho marcado da sua originalidade - porque da fisionomia da Nação fazem parte os elementos fundamentais da sua grandeza."
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Vera Marques Alves e João Leal (antropólogos intervenientes no colóquio às portas do MAP em 20 de Junho de 2009) são também ouvidos pelo Público, e no final a directora Andreia Galvão antecipa vários dos seus projectos para a reabertura do MAP no último trimestre - reabertura definitiva ou abertura simbólica de um "museu em obra" (A.G.) à procura do seu novo destino? Serão eventualmente projectos excessivos para o pequeno espaço do Museu, onde se deverá repor parte substancial das suas colecções próprias e mostrá-las como exemplo de uma concepção material e ideologicamente datada mas eficaz e brilhante de museologia etnológica, na sua articulação com o que foi a "política do espírito" e a "campanha do bom gosto", o compromisso modernista e a afirmação do design, a história da etnografia e a sua crítica, mediante um exercício cirúrgico de conservação, contextualização, "desconstrução" e actualização ou diálogo com o presente.
Que ampliações ou alterações espaciais são necessárias (e serão possíveis? serão convenientes?) para que caibam filmes de época e figurinos do Verde Gaio, o mobiliário expositivo da época e o novo que será indispensável, o museu-documento com a sua cenografia específica, os núcleos interpretativos temáticos e a ligação à contemporaneidade, mais a "embaixada do país em Lisboa", da gastronomia às festas, etc. O "museu em obra" deverá ser também um "museu em reflexão", com participações disciplinares distintas e complementares. O debate que antes se fez à porta do MAP encerrado deverá passar para dentro do seu espaço entreaberto. Não pode perder-se a oportunidade de pensar-se o MAP e o seu tempo para ponderar as melhores opções que devem guiar a reabertura de um museu que foi e vai continuar a ser problemático, talvez também problematizador.
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